Esta história não é sobre uma gatinha
Randall de Sève
Carson Ellis
Fábula
Tradução de Susana Cardoso Ferreira
Algo parece estar errado. Se o título afirma que a história não é sobre uma gatinha, a ilustração da capa destaca justamente uma felina preta e branca de olhar espantado. Ainda não abrimos o álbum ilustrado e a curiosidade já se instalou.
Quando se fala de prever o que acontece no livro a partir das informações paratextuais (título, ilustração da capa, autores, contracapa, guardas…), é disto que se fala: de imaginar sequências narrativas, contextos espacio-temporais, características das personagens a partir destas informações prévias à leitura. Por vezes, a mediação é mais necessária, as pistas não sugerem nada de forma tão óbvia.
Neste caso, é o próprio livro que usa uma estratégia (a da contradição) que despoleta, até sem grande consciência, questões, juízos de valor, hipóteses.
Começamos então a ler em busca da resposta: afinal é ou não uma história sobre uma gatinha?
A primeira parte da narrativa mantém a estrutura negativa, repetindo sempre o título do álbum no início de cada novo momento. Assim, contra a evidência da ilustração, o texto insiste em negar que se reporte a uma gatinha que está, assustada, debaixo de um carro. E segue negando a participação do cão que a descobre e a atenção progressiva que vai ganhando por parte de várias pessoas que passam por perto.
À medida que a história avança, o texto vai-se apresentando cumulativamente, reforçando a intenção irónica. O ritmo que a repetição impõe, sustentada na enumeração e na formulação negativa, acentuam a contradição e alimentam a atenção do leitor em busca de uma resposta.
A certa altura, o mistério desfaz-se. O texto abandona a previsível estrutura para progredir. Depois de todas as pessoas, desconhecidas entre si, terem colaborado no resgate da gatinha, o grupo decide quem se responsabilizará para a acolher.
A ilustração apresenta um enquadramento espacial do acontecimento e assim é possível descortinar que aquelas pessoas fazem parte de uma comunidade geográfica. Apesar disso, é a situação que provoca o encontro e a sua aproximação futura.
Ao reler a interpretação da história que a contracapa oferece, explica-se a intenção simbólica da retórica da negação. A história é sobre valores. Mas isso o leitor já sabe, o texto final só o confirma.
