Do trópico ao gelo: a fabulosa odisseia de Tété-Michel Kpomassie
Fotos © Pedro Serpa
Publicado em 1981, O Africano da Gronelândia chega agora a Portugal pela mão da Tinta da China e traz-nos a história de um jovem togolês que decide, contra todas as probabilidades, chegar à Gronelândia e viver com os inuítes.
Tété-Michel Kpomassie nasceu no Togo, em 1941, no seio de uma família tradicional onde se criaram 26 irmãos, filhos do seu pai e de oito mulheres, uma delas sua mãe. Aos 16 anos, recolhia cocos com um irmão e um tio quando foi surpreendido por uma cobra, tendo caído do coqueiro e perdido a consciência. Acreditando que tinha sido mordido, o pai deu-lhe a beber um antídoto que acabou por envenená-lo, deixando-o muito doente. Foi assim que o levaram à presença da sacerdotisa de um culto animista devoto das cobras, que o terá tratado, exigindo, em contrapartida, que Tété-Michel fosse iniciado nesse culto, passando os sete anos seguintes na selva. No período de convalescença, enquanto aguardava pelo destino que lhe tinha sido imposto, o então adolescente encontrou um pequeno livro na livraria evangélica de Lomé. Na capa, um inuíte vestido com casaco de pele de foca sorria para a fotografia. Lá dentro, a descrição da Gronelândia e dos seus habitantes plantou em Tété-Michel duas certezas sobre um lugar que a sua imaginação ainda não conseguia perceber: na Gronelândia não havia cobras e aquele era o lugar aonde precisava de chegar.
A viagem começou no Togo e passaram vários anos antes que Tété-Michel conseguisse chegar à Gronelândia. Mas chegou. Ali viveu quase dois anos entre os inuítes e fez a promessa de regressar, um dia, para ficar. A história da viagem ficou registada no livro O Africano da Gronelândia, originalmente publicado em 1981, em França, e agora publicado em Portugal com a chancela da Tinta da China (e tradução de Margarida Periquito). Aquando da sua passagem por Lisboa, na semana passada, Tété-Michel Kpomassie conversou com a Blimunda sobre esse livro, a longa viagem entre o trópico e o gelo profundo e aquilo que podemos descobrir sobre nós e o mundo se nos dispusermos a caminhar, um passo atrás do outro, acolhendo e sendo acolhidos por quem connosco se cruzar no caminho.
O Africano da Gronelândia
Tété-Michel Kpomassie
Tinta da China
Há muitas viagens neste livro. Podemos dizer que a primeira é a leitura do livro sobre os inuítes, Les Esquimaux du Groenland à l’Alaska, de Robert Gessain, que comprou numa livraria de Lomé, no Togo?
Não. A primeira viagem foi certamente o encontro com a serpente. E foi terrível. Mas ainda podemos recuar mais… O verdadeiro começo de tudo isto foi o nosso – meu, do meu irmão e do meu tio – despertar pela manhã quando nos preparávamos para partir para a plantação de cocos. Esse despertar já foi uma viagem. Fazíamos aquilo regularmente, mas essa manhã foi um momento que mudou completamente a minha vida. Mas como dizia na sua pergunta, há muitas viagens numa viagem, é verdade… Quando iniciei a minha fuga, com a viagem em direcção ao Gana, apanhei um táxi-mota. Imagina isso, iniciar uma viagem para a Gronelândia num táxi-mota?
Só consigo imaginar porque li o livro, mas facilmente pensaria que era uma ficção.
Sim! Há muitas viagens neste viagem. E há a viagem espiritual, o meu encontro com o animismo da Gronelândia e a comparação com o animismo do Togo. Na minha terra, respeitamos a terra, os raios, que são uma divindade, as árvores, e os gronelandeses fazem o mesmo com os icebergues. Esse animismo começou por me perturbar.
Porquê?
Há uma cidade na Gronelândia, Ilulssat, que significa icebergue. Os habitantes desta cidade são os ilulmioq, o que quer dizer «descendente do icebergue». É belo e foi por isso que passei a considerar os icebergues como algo caloroso. Em 2009, fiz uma série de conferências a bordo de um barco norueguês ao longo da costa ocidental da Gronelândia e, depois disso, o barco preparava-se para partir para o Pólo Sul. E a tripulação perguntou-me se eu queria ir, mas eu recusei, porque os icebergues do sul não têm alma.
Em que é que diferem dos icebergues do Norte?
No Pólo Sul, só há cientistas, trabalhando a partir de pedaços de gelo. E o mesmo acontece, por exemplo, no Grande Norte da Noruega, onde estive em 2009, de visita, a convite do governo norueguês. Na ilha de Spistsbergen, mostraram-me os icebergues e percebi que também não tinham alma, porque as pessoas que ali vivem vieram do continente, logo, não há uma população autóctone que tenha essa relação com os icebergues.
Nessa altura, o animismo que descobriu na Gronelândia já não o perturbava?
Não, porque percebi esse animismo e descobri que não era diferente daquele que temos no Togo. Quando os caçadores da Gronelândia matam uma baleia, essa baleia é como um convidado, é preciso tomar conta da sua alma, acolhê-la bem. Há esse reconhecimento. E nós temos isso mesmo no Togo com a adoração das serpentes, que permite que as pessoas se reúnam em torno de um totem e isso é importante. É uma comunicação permanente com a natureza, um respeito. Matamos porque precisamos de nos alimentar, mas há animais sagrados que não podemos matar. Isso dá uma dimensão espiritual aos habitantes dos locais, sejam no Togo ou na Gronelândia.
Uma das coisas que regista ao longo da sua viagem pela Gronelândia são as semelhanças que, inesperadamente, encontra entre a cultura local e a sua cultura de nascimento, no Togo. Por outro lado, este livro mostra que um dos elementos partilhados entre a Gronelândia e o Togo é uma desigualdade social instaurada por quem impôs as leis: o governo dinamarquês, por um lado, e o poder colonial, por outro.
Sim, há muitas questões comuns, apesar da distância e das diferenças. Aqueles que chegaram a África para evangelizar, vieram trazer-nos uma narrativa, «o pão nosso de cada dia nos dai hoje». Isto não fazia qualquer sentido para os meus antepassados, porque na nossa cultura, somos nós que alimentamos os deuses com oferendas. E o mesmo aconteceu com os inuítes: quem chegou lá para evangelizar, levou a mesma narrativa. Ora, ali não havia pão, nem farinha… O primeiro pastor dinamarquês na Gronelândia que tentou traduzir a Bíblia para a língua esquimó sofreu bastante, porque não sabia como traduzir esta parte da oração. E traduziu para «a foca nossa de cada dia nos dai hoje»! Só que ali ninguém alcança a foca de que precisa só por pedir, é preciso trabalhar e trabalhar duro. Quando soube disto, percebi que havia uma mentira comum, os evangelizadores dizem a mesma coisa a povos completamente diferentes, a narrativa nunca muda.
Aquilo que conhecia da sua infância num Togo colonizado repetia-se nos confins do norte gelado da Gronelândia?
Sim, acontecia da mesma maneira. Fui à escola durante seis anos, isto antes da independência do Togo. Os nossos nomes togoleses não eram admitidos na escola e éramos obrigados a ter um nome cristão, que só conhecíamos no primeiro dia de aulas. A mim calhou-me Michel e ao princípio nem sequer reconhecia o nome quando o professor me chamava…
Mas manteve esse nome quando publicou o seu livro.
Sim, porque já era conhecido também como Michel, mas fiz questão de colocar o meu nome original antes: Tété-Michel. Na escola, os padres missionários deram-me umas imagens de São Miguel e eu comecei a gostar daquilo, até porque o São Miguel lutava com um dragão.
E um dragão é como uma serpente.
Exactamente, são a mesma coisa! E era eu que matava o dragão, a serpente. Já na Gronelândia, percebi que o dragão que eu atingi realmente foi a minha cultura, os meus ancestrais, de cuja herança fui ensinado a afastar-me. Era uma lavagem cerebral. As culturas e a espiritualidade desenvolvem-se num ambiente, num contexto; se eu chegasse à Gronelândia e tentasse converter as pessoas às práticas do vudu, seria tomado por um louco! Mas o que aconteceu em África e em tantos outros sítios, foi isso mesmo, deixámo-nos dominar por uma religião que nasceu no deserto. Não há relação, só imposição. E funcionou. No Togo, aos domingos, vemos as pessoas a irem à igreja e não ao templo vudu, e as duas coisas existem, mas na Europa, não vejo templos vudu. Porquê? Deixámo-nos dominar e virámos as costas às nossas crenças.
Lembra-se do que sentiu quando chegou à Gronelândia? Como foi ser recebido com espanto pelos habitantes locais, que nunca tinham visto um homem negro e tão alto?
Foi um encontro impressionante! E foi uma descoberta mútua. Quando desembarquei, houve um burburinho geral e algumas crianças começaram, cheias de medo, a gritar «Toornaarsuk» e «Quivittoq», que são espíritos que habitam as montanhas, sendo que Toornaarsuk é negro, por isso faz sentido. As pessoas olhavam para mim, algumas queriam tocar-me nos cabelos. Com o passar dos dias, foram-me descobrindo e também eu fui descobrindo coisas sobre as pessoas que ali viviam. Aprendi a língua, aos poucos, e percebi que podia viver na Gronelândia.
Em Setembro deste ano, vai regressar à Gronelândia. Será para ficar?
Sim, definitivamente. E quero escrever o meu segundo livro, desta vez sobre a minha infância no Togo. Planeio viver sossegado e deixar de fazer conferências, que é o que faço desde que publiquei este livro, e escrever um novo livro, uma espécie de restituição da minha memória. Não tenho arquivo familiar, não há documentação das famílias sobre estas práticas tradicionais, portanto, quero deixar isso escrito.
O Africano da Gronelândia nasce dos diários que escreveu entre os inuítes, mas só é realmente escrito muito longe do gelo, já depois do seu regresso ao Togo. E agora será o inverso, estará na Gronelândia a escrever sobre o Togo.
Sim, é o desafio que quero abraçar, viver num país sem árvores e ali conseguir recrear as árvores da minha infância. É um trabalho colossal, acredito, mas é algo que sinto que devo fazer, devo-o à minha família, aos meus ancestrais. Os meus pais educaram-me de acordo com princípios simples, de respeito, dentro do animismo, e o mesmo aconteceu com os meus irmãos e irmãs, filhos do meu pai e de sete outras mulheres. Há um episódio de que nunca me vou esquecer: a minha irmã mais velha morreu com malária quando eu era pequeno e foi ela que tomou conta de mim durante algum tempo. Depois da sua morte, as pessoas da vila fizeram uma estatueta da minha irmã e deram-na à minha mãe, como era tradição, e a minha mãe levava-a para todo o lado, falava com ela, alimentava-a, depondo pedaços de comida junto da imagem. Era a alma da minha irmã. Quando os padres brancos chegaram à aldeia, queimaram essa – e outras – estatuetas, dizendo que éramos idólatras! E percebi mais tarde que algumas estatuetas como essa, as mais belas, foram vendidas a coleccionadores ricos e a museus europeus. Vi algumas em diferentes museus, quando comecei a viajar. E isso foi matar a minha irmã duas vezes, em nome de uma religião… não creio que se possa chamar religião a isso.
Também por isso, sente que esse livro sobre o Togo é uma missão que tem de cumprir?
Sem dúvida, este é um dos motivos. Sem dúvida alguma.
Regressemos ao livro de Robert Gessain. Como é que um adolescente que nunca tinha saído do Togo recebeu o conteúdo de um livro que falava de neve, gelo, paisagens sem árvores?
Foi impressionante para mim. Muitas palavras não me diziam nada: esquimós, neve, caiaques… Mas havia a fotografia da capa e essa prendeu-me imediatamente. Este homem com um casaco feito de peles de animais a sorrir, tive a impressão de que era para mim que ele sorria e senti isso como uma espécie de convite. E pelo meio, havia o medo das cobras e o não querer regressar à floresta. Nem sei ao certo o que pensei, porque tinha 16 anos… Certo é que comprei o livro com o dinheiro que ganhei a apanhar cocos e passei um dia na praia a lê-lo. Não percebi como podiam aquelas pessoas caçar no mar, nem como podia acontecer o mar ficar gelado e podermos caminhar sobre ele, e muito menos como era possível a noite durar tantas horas, e depois o dia durar tantas horas. E havia uma coisa muito especial: não havia cobras na Gronelândia. O medo é uma coisa muito forte e a partir daquele momento, não conseguia pensar em mais nada para além da Gronelândia.
Se esse episódio do encontro com a serpente não tivesse acontecido, esta viagem teria existido? Podemos sempre multiplicar os «ses»… Não sei. Se o meu pai tivesse aceitado converter-se ao cristianismo, ou ao islamismo, não me teria levado à sacerdotisa do culto das serpentes. Se este livro não tivesse chegado ao Togo, eu nunca teria ouvido falar da Gronelândia. Como é que este livro foi parar a uma livraria evangélica no Togo? É um mistério que nunca vou resolver e há muitas coisas que são assim, um mistério. Vou contar-lhe uma história pessoal. Em 1965, tinha eu 24 anos, estava na cidade gronelandesa de Egedesminde, houve uma noite em que decidi ir dançar. Só havia um lugar para isso e, quando cheguei, vi uma rapariga dinamarquesa (o nome dela não importa), que teria 18 anos, e que não parava de olhar para mim. O olhar dela perturbou-me muito, fiquei sem saber o que se passava e fui à rua apanhar ar e ver os icebergues. Quando voltei ao baile, ela continuava a olhar para mim. Convidei-a para dançar e dançámos. Estávamos loucamente apaixonados, mesmo que não nos conhecêssemos antes, era inacreditável, e não era apenas uma coisa física, até porque nunca dormimos juntos na Gronelândia. Ela ficou em Egedesminde durante um ano e depois regressou à Dinamarca. E eu continuei a minha viagem até ao Norte da Gronelândia, tentando chegar a Thule, mas como nunca consegui um barco que fosse para lá, decidi regressar a África. E quando regressei, parei na Dinamarca, e essa rapariga acolheu-me na casa da sua família. Vivi nessa casa durante o tempo que passei na Dinamarca, antes de regressar a Paris, onde ia passar uma temporada. E nessa altura, decidimos casar-nos, mas quando regressei a Copenhaga, estava tudo acabado. Ela tinha-se apaixonado por outro rapaz e já não queria casar-se comigo. Para mim, foi um tremor de terra, tudo perdeu o sentido. Regressei a Paris e depois voltei para o Togo e continuei a minha vida. Em 1981, o livro foi publicado e eu voltei à Dinamarca, onde voltei a estar com os pais dela, mas nunca falámos do passado. Entretanto, casei-me com outra mulher, há 46 anos, tivemos dois filhos e instalei-me em França. E agora, mesmo sabendo desde o início que o meu projecto era regressar à Gronelândia para viver os meus últimos anos, percebi que a minha mulher já não o queria fazer. E iniciámos o processo de divórcio. Entretanto, recebi uma mensagem através do Facebook, de uma dinamarquesa que dizia que uma amiga dela me queria contactar. Dei-lhe o contacto, sem fazer ideia do que se tratava. Era ela, essa rapariga dinamarquesa por quem me apaixonei em 1965, agora uma mulher… Também ela se casou, teve filhos, ficou viúva. E retomámos a correspondência, acabando por falar do que tínhamos vivido juntos, o que me fez relembrar de muitas coisas. Agora, quando regressar à Gronelândia de vez, vou parar na Dinamarca e será em casa dela que vou ficar. Como dizia há pouco, podemos sempre multiplicar os «ses», mas nunca saberemos a resposta a certas perguntas.