Diário fake para os tempos modernos
O Diário de William Shakespeare
Cláudia Jardim, Diogo Bento, Sara & André e Sara Mealha
Teatro Praga
Pastiche, paródia, delírio supremo, O Diário de William Shakespeare é um livro que deixa adivinhar o riso e o prazer por trás da sua concepção. Como todos os bons gestos humorísticos, não é um riso vazio que sai destas páginas, nem é apenas riso: há alguma amargura em certas páginas deste diário fictício, sempre amparada pelo humor inteligente e os seus muitos recursos estilísticos. Há, além disso, uma capacidade acutilante de atravessar épocas, desmanchando a cronologia e aquela ideia de olhar para o passado como coisa já arrumada, empurrando a leitura para uma consciência sobre este estranho facto de estarmos sempre a antecipar o que já aconteceu e a errar onde já tínhamos aprendido.
Seguindo-se à Trilogia Shakespeare, três espectáculos que o Teatro Praga levou à cena entre 2007 e 2021, este livro é um exercício que convoca o registo diarístico, mas igualmente uma reflexão sobre esta nossa contemporaneidade atravessada por redes sociais, queixas e murmúrios que se partilham com o mundo (mas que raramente conduzem a uma linha de pensamento a que se dê seguimento), comunicação instantânea à base de memes (eles próprios um pastiche) e emojis. Podia dizer-se que a inspiração começa no Diário de um Banana, o bestseller infanto-juvenil em vários volumes, mas essa é apenas uma das muitas rapinas de que se faz este volume. Tintim, os gatos e ratos de Art Spiegelman, vários quadros famosos da pintura ocidental, o Tio Patinhas ou o jogo Minecraft são mais do que referências nas páginas do suposto diário do bardo; o pastiche é assumido e exibido de modo explícito, tirando partido da multiplicidade de registos gráficos, visuais e narrativos que esta colagem alucinada de trabalhos alheios permite.
Com o pastiche sancionado pelas recentes versões legislativas em torno dos direitos autorais, Cláudia Jardim, Diogo Bento, a dupla Sara & André e Sara Mealha dão rédea solta ao conceito, mas não abdicam de manter uma linha sólida de alguma factualidade em torno da vida e da obra do criador de Romeu e Julieta. Que essa linha se vá desdobrando a par com especulações várias não faz, necessariamente, parte da paródia, decorrendo, isso sim, das muitas zonas cinzentas no que à biografia de Shakespeare diz respeito.
É com tudo isto que se constrói uma narrativa que pretende ser o diário de Shakespeare, primeiro um jovem (entediado e um pouco irritante, como é apanágio da condição etária), várias páginas mais tarde um actor/autor algo destrambelhado que vai pontuando o registo dos seus dias com umas tiradas mais ou menos profundas sobre a condição da prática artística, os parcos rendimentos que daí advêm ou as dificuldades de coordenar o ofício com a vida familiar, tudo isto com o poder político a interferir e com o público a nem sempre receber da melhor forma aquilo que se mostra no palco.
O gesto de inventar um diário para Shakespeare a partir de recursos, linguagem e tiques contemporâneos não é apenas gatilho para o humor, como poderia parecer à primeira vista, nem o humor é apenas risota. Num livro de difícil arrumação bibliográfica, tal é o peso do pastiche e tamanha a confusão de cronologias, o humor é divertimento, mas também ironia, sarcasmo, sobretudo modo de pensar sobre o mundo. E é confirmação de que os séculos vão arrastando consigo muitas mudanças, mas a natureza humana é molde difícil de alterar, tal como as relações do poder político com as artes e a dos artistas com a vida prática.