Crítica Sara Figueiredo Costa
29 Outubro 2025

Diálogo de Ofícios

O Dom das Línguas
J. M. Coetzee e Mariana Dimópulos
Dom Quixote
Tradução de J. Teixeira de Aguilar

Não é a primeira vez que J. M. Coetzee entabula uma conversa epistolar em forma de livro. Já o havia feito com a psicoterapeuta Arabella Kurtz no volume The Good Story – Exchanges On Truth, Fiction And Psychotherapy , debatendo questões e trocando pontos de vista em torno da ficção e do quanto a memória, o inconsciente e os possíveis acessos que vamos criando para os alcançar interferem na criação ficcional e na ideia de uma fronteira entre o que chamamos realidade e o que chamamos ficção, e volta a fazê-lo neste O Dom das Línguas. Agora, a interlocutora é a tradutora e escritora argentina Mariana Dimópulos e o tema é a tradução, sempre assumida como prática que não existe em abstracto, dependendo de um contexto social, político e também pessoal.

É pelo reconhecimento desses contextos que começa o livro, logo na introdução, com um texto assinado pelos dois autores. Nessas linhas inaugurais, fica claro um ponto de partida relevante para todo o livro no que toca ao tema das línguas: «Não é fácil adoptar uma posição neutral a este respeito.» O diálogo que se segue nasceu de um trabalho conjunto, um processo peculiar no que diz respeito à criação e edição de livros. J. M. Coetzee escreveu em inglês, sua língua de escrita, um breve romance intitulado The Pole, cuja acção decorre na Espanha contemporânea. Pediu a Mariana Dimópulos que o traduzisse para espanhol de modo a que o resultado dessa tradução, que viria a chamar-se El Polaco, fosse assumida como o texto original, a partir do qual quaisquer traduções para outra língua se fariam. O projecto não teve os resultados que o autor esperava «por pressões vindas da indústria editorial» mas, por outro lado, e ainda citando a introdução:

«permitiu-nos formular questões gerais sobre o estatuto secundário da tradução relativamente ao texto primário ou “original”, e aliás sobre o estatuto secundário de quem traduz relativamente ao estatuto primário do “originador”, o autor.» (pg.16)

Essas questões de estatuto atravessam O Dom das Línguas, com a relevância de colocarem em debate um autor e uma tradutora, mas o papel dos intervenientes neste diálogo não se fica pela possibilidade de serem lidos como uma espécie de representantes de cada um dos lados envolvidos neste processo que vai da escrita à tradução. Pelo contrário, Coetzee e Dimópulos trazem para a conversa os seus contextos biográficos, confirmando que os gestos, as escolhas e o exercício do ofício de cada um são profundamente motivados pelas línguas que falam, pelo contexto sociolinguístico em que cresceram e pela actualidade geopolítica, por um lado, e da indústria editorial, por outro. Para situar esses contextos, J. M. Coetzee convoca o seu avô polaco que abandonou a língua materna em favor do alemão (a língua que falava a mulher com quem se casou),  a sua mãe, nascida nos Estados Unidos da América, antes da mudança da família para a África do Sul, e também os avós paternos, emigrados dos Países Baixos para a mesma África do Sul onde nasceria o autor. Nessa convocação surgem o polaco, o alemão, o inglês, o neerlandês e o africânder, cada língua assumindo diferentes estatutos em função da cronologia, da geografia e da situação política. Do lado de Mariana Dimópulos, há uma mãe nascida em Espanha e emigrada para a Argentina e um pai argentino, filho de gregos, portanto também não faltam contextos bilingues, assunções sociais sobre a pronúncia aceitável de uma mesma língua – o espanhol, falado em Espanha como na Argentina – e espaços emocionais distintos para o uso de cada idioma. A partir daqui, não é difícil constatar que a língua que falamos e as línguas que podemos ter aprendido mas não falamos são coisas que definem de forma intensa quem somos e qual é o nosso lugar no mundo.O Dom das Línguas é sobretudo sobre os diferentes papéis que a língua ocupa e desencadeia ao longo do tempo e dos espaços, mas não foge à questão da tradução em geral e da tradução literária em particular. Diferentes abordagens e teorias são discutidas, quase sempre com exemplos práticos e referência a questões aparentemente irresolúveis (o debate sobre a intraduzibilidade é um dos temas importantes nestas páginas), sempre assumindo a complexidade do processo de tradução e deixando de lado as habituais simplificações que ligam o ofício a uma qualquer traição. Como escreve Mariana Dimópulos a dada altura:

«a tradução é o jogo que consiste em tornar muitas coisas explícitas ao mesmo tempo que se encobrem outras com um manto de discreta elegância.» (p.85)

Coetzee não discorda, mesmo que continue a puxar para a conversa o binómio fidelidade-liberdade, procurando ampliar o diálogo sobre o assunto e assumindo, ao mesmo tempo, que não sairão daqui conclusões fechadas e para sempre arrumadas. Esse é, aliás, um dos grandes méritos deste diálogo escrito, a par com o acesso que permite aos leitores sobre o tanto que está por trás desse gesto que transforma um texto noutro texto que se assume ser, ainda assim, o mesmo.

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