Destaque Sara Figueiredo Costa 26 Agosto 2024
Fotos © Sílvia Moldes Matias

Deuses romanos, santos cristãos e uma festa popular

17 de Agosto é o dia de São Mamede e em Janas, concelho de Sintra, a benção dos animais continua a ser o momento em que as tradições populares festivas e as antiquíssimas práticas religiosas se juntam numa romaria que vale a pena conhecer.

A festa começou três dias antes, mas o ponto alto das celebrações populares em Janas, concelho de Sintra, foi no dia 17 de Agosto. Não se sabe quando terá começado esta tradição, mas a benção do gado tem na capela de São Mamede de Janas um dos mais antigos locais de culto a este santo que terá nascido na Capadócia, no século III, e que foi sempre associado aos animais em geral e ao gado em particular, uma vez que terão sido os bichos a protegerem-no das torturas a que foi sujeito, como conta a lenda. 

Durante muito tempo, desde as investigações feitas pelo Visconde de Juromenha no século XIX, baseadas na crença popular, acreditou-se que a capela circular de Janas tinha sido construída sobre as ruínas de um templo romano, até porque, nas imediações, foram encontradas algumas pedras de grandes dimensões que pareciam configurar a estrutura de um altar dessa época. Para as divindades ali cultuadas, apostou-se em Janus, deus associado à mudança e à passagem do tempo, e aí estaria uma explicação possível para o topónimo, mas também em Diana, deusa da caça, dos animais e da natureza, uma vez que as festas em sua honra, no Monte Aventino, aconteceriam no mês de Agosto. Escavações recentes feitas por arqueólogos da Câmara Municipal de Sintra confirmaram que as pedras do tal altar não eram, afinal, do período romano, nem eram pedras de ara, mas sim contrafortes que ajudavam a suster a estrutura da igreja. A data de construção deste pequeno templo circular foi fixada no século XVI, havendo vestígios de templos mais antigos nas suas fundações, mas essa antiguidade, de acordo com os arqueólogos, andará entre os séculos IX e XI. Ainda assim, séculos de romarias em honra de São Mamede associados às histórias que se foram contando sobre deuses romanos e altares em sua honra acabaram por transformar-se em material identitário, que ajudou a forjar as narrativas locais sobre o templo circular e a festa que se lhe associa. É isso a tradição, uma parte resultante das histórias que vamos contando, outra parte resultante dos factos que podemos apurar. Nenhuma das vertentes predomina e talvez seja isso que mantém as narrativas vivas, bem como as práticas que delas derivam, umas mais sagradas, outras mais profanas.

A 17 de Agosto, então, celebra-se o dia de São Mamede. Na igreja circular de Janas, em Sintra, cumpre-se a antiquíssima tradição da benção do gado. Com esse gesto religioso assegurava-se, assim se acreditava, a proteção das doenças que assolam o os animais, mas igualmente a sua fertilidade, de modo a que o gado continuasse a reproduzir-se com saúde. 

Três voltas à igreja

Se até há algumas décadas boa parte dos rebanhos dos arredores sintrenses se deslocavam a Janas, inundando o pequeno terreiro da igreja de animais que eram cuidadosamente encaminhados para as três voltas proverbiais à igreja antes que o padre os abençoasse, hoje é pouco o gado presente na festa. Os rebanhos da região decresceram, como aconteceu um pouco por toda a parte, muitos desapareceram, as formas de criação caseira de gado foram em grande medida substituídas por produção intensiva e há pouco quem se dedique à pastorícia. Ainda assim, à sombra dos pinheiros que ladeiam a igreja, contavam-se muitas cabras e ovelhas (algumas com crias), meia dúzia de vacas, galinhas, patos e coelhos em quantidade, cavalos e burros. Todos esperavam, ainda que sem o saberem, o momento solene da sua benção.

A tradição cumpriu-se, como todos os anos, mas antes do momento solene em que dois padres caminham por entre os animais e os vão abençoando, caldeira de água benta e respectivo aspersor a postos e alguma perícia para se desviarem dos vestígios que os bichos foram deixando pelo chão, recuemos um pouco. Ainda falta um par de horas para a missa, mas a igreja já está aberta e as velas devocionais vão ardendo na estrutura metálica instalada junto à porta, à medida que chegam cada vez mais pessoas e compram fitas coloridas, que se acredita terem poderes protectores, para os seus animais. Não só para os animais, como anuncia uma mulher junto à banca da comissão de festas: «As pessoas também podem usá-las, que mal não faz!» Ali, para além das fitas e de imagens de São Mamede, vendem-se também as velas convencionais – as mesmas que ardem junto à porta da igreja – e outras velas, estas com forma pouco definida de um animal, que tanto pode ser gado como um cão. 

Ao gado que deu origem a esta celebração juntam-se, nos últimos anos, cada vez mais animais de companhia. São sobretudo cães que, acompanhados dos seus tutores humanos, percorrem o círculo da igreja três vezes, já com as fitas coloridas presas nas coleiras ou nas trelas, acompanhando depois o padre no seu percurso. 

É à porta da igreja que Celeste Gomes nos recebe. Moradora de Janas há mais de seis décadas, é uma das voluntárias que integra a comissão que organiza a vertente religiosa desta festa. É ela que explica que a missa começará às 15h30, como todos os anos, e que quem quer mesmo assistir à função, «o melhor é ir entrando, porque a igreja é pequena e enche depressa». Celeste conhece bem o templo, uma vez que cuida dele regularmente, assegurando a limpeza, a abertura das portas e outras tarefas. Também por isso esta festa é tão importante para si: «Participar na organização desta festa tem muito significado, porque sou voluntária da igreja. Até há uns anos, tinha o meu pequeno comércio e trabalhava todo o dia, mas agora estou sempre disponível para tratar da capela. Além disso, sou devota de São Mamede, claro.» Não lhe roubamos mais tempo, uma vez que a azáfama junto à banca das velas e das fitas é grande e ainda há tarefas por cumprir até à hora da missa.

A festa popular

No terreno à volta da igreja, o cenário é o de quase todas as festas populares. Num dos lados da estrada, há carrosséis, carrinhos de choque e barracas de tiro ao alvo. Do outro lado, o coração da festa: o palco por onde desfilaram bandas e músicos para todos os gostos, a zona da feira, onde se podiam comprar sapatos, roupas, utensílios de cozinha, enchidos e queijos, para além do tradicional pão de Mafra (que não é longe de Janas) e dos parrameiros, também conhecidos como bolos de festa, um pão doce que se vende em Janas e em várias outras festas do concelho de Sintra. Mais adiante é a zona dedicada aos comes e bebes, onde barraquinhas de bifanas convivem com marcas de gelados ou crepes modernizados com sabores que há uns anos não entravam numa festa como esta… Ainda assim, os pistácios e o abacate não levam a melhor sobre as queijadas de Sintra, parece-nos, nem sobre as muitas iguarias caseiras que se partilham no enorme piquenique que decorre à sombra dos pinheiros. Este piquenique é outra das vertentes de uma tradição que se mantém: era aqui que lavradores de toda a região partilhavam o farnel no dia da festa, quase sempre composto por alimentos de produção própria. Agora, já não são apenas lavradores que se juntam, mas o piquenique continua a ser concorrido, de tal modo que há quem venha de véspera para marcar o seu lugar.

Quem organiza toda a vertente profana da festa, chamemos-lhe assim, é o Janas Futebol Clube, instituição fundada em Setembro de 1945 que, hoje, dinamiza a prática desportiva de várias outras modalidades para além do futebol, assegurando também uma série de actividades culturais e recreativas. 

Na banca onde se vendem bebidas, comida e vários materiais do clube, como camisolas, cachecóis ou livros, falamos com Susana Gonçalves, vice-presidente do Janas Futebol Clube. É ela que explica que tudo o que vemos aqui, neste imenso terreiro, começa a ser pensado logo depois da festa do ano anterior: «Estamos a acabar uma e a começar a preparar a outra. Pelo meio temos outros momentos importantes, como o aniversário do clube, em Setembro, o Pão por Deus, em Novembro, o Natal, mas em Janeiro já estamos mesmo com as mãos na massa, a preparar o São Mamede.» Nove elementos integram a direcção do clube, mas para que esta festa aconteça são várias as pessoas que se voluntariam para trabalhar. «Este ano, somos cerca de 130, sendo que a voluntária mais nova tem dois ou três anos – ainda não trabalha muito, mas pronto – e a mais velha, a Ti Quitas, deve ter para aí uns oitenta e nove.»

Percebe-se que a ligação do clube à comunidade é peça fundamental na estrutura desta festa. Os voluntários que se vêem espalhados pelo recinto nunca param. São elas e eles que garantem a limpeza do espaço, o bom funcionamento das casas de banho, a articulação entre os diferentes espaços da festa. Por exemplo, enquanto decorre a missa, é preciso baixar o som das colunas que vão transmitindo música a quem prefere estar nas mesas do restaurante improvisado a céu aberto. E há que garantir que os animais que aguardam pelo momento da benção estão devidamente acomodados, sempre à sombra e com acesso permanente a água e alimento – às vezes, também é preciso que um voluntário explique aos visitantes que fazer festas àquele burro que ali está parado pode não ser uma boa ideia… Quem vê este terreiro cheio de espaços bem delimitados, todos a funcionarem de acordo com o previsto, pode esquecer-se do trabalho que tudo isso dá, mas Susana Gonçalves explica: «Isto é um pinhal com a igreja, não tem mais nada. Temos uma puxada de água e, agora, temos as casas de banho, que construímos de raíz. De resto, é preciso carregar muita coisa a partir da sede do clube e de outros sítios, para montar isto tudo. Felizmente, agora temos acesso a um atrelado, mas dantes era tudo feito com os tractores que as pessoas traziam. E com os braços, claro.»

Fotos © Sílvia Moldes Matias

Deixámos os dois padres junto aos animais e é lá que regressamos, a tempo de assistir às últimas bençãos. O gado e os bichos de capoeira já receberam a sua dose de água benta e, no processo, até se perdeu um pedaço de um dos aspersores bentos, acidente que não desarmou o padre: «O melhor é voltarmos cá mais logo, quando já não estiver tanta gente, para procurar.» Agora, são os cães que rodeiam os sacerdotes, com os seus acompanhantes humanos pedindo que os bons augúrios de São Mamede recaiam sobre os animais, todos devidamente engalanados com as fitas coloridas. Os padres cumprem a tradição e os cães não parecem aborrecidos com as gotas de água que os vão atingindo. Este ano, para além do gado e dos muitos cães, um papagaio sossegadamente empoleirado no pulso de uma mulher era também benzido pelo prior. Pelo meio, um homem que já teria bebido um pouco mais do que o previsto pedia encarecidamente que um dos padres abençoasse a sua garrafa de vinho, acomodada debaixo do braço. O desejo não foi atendido. Afinal, esta é a benção dos animais e a tradição nunca sugeriu que Baco poderia ser uma das divindades romanas cultuadas neste lugar. De qualquer modo, é difícil saber o que se esconde nas profundezas deste terreno de Janas e o que, não estando lá, continua a estar nos laços e nas histórias que unem esta comunidade sintrense.