Crítica Sara Figueiredo Costa 15 Junho 2021

Deus nunca morou aqui

O Desassossego da Noite
Marieke Lucas Rijneveld
Dom Quixote
Tradução de Patrícia Couto

Vencedor do Man Booker Prize de 2020, este é também o primeiro romance de Marieke Lucas Rijneveld, uma das jovens vozes da literatura dos Países Baixos que, com a distinção e o mediatismo que se lhe seguiu, tem agora entre mãos a tarefa sempre ingrata de escrever um segundo romance que confirme as suas muitas qualidades narrativas.

O Desassossego da Noite mergulha sem protecção no universo da infância, um lugar onde a candura e a inocência não são os únicos pilares da existência, ao contrário do que certas visões idílicas desta fase da vida gostam de propagar. A infância, aqui, é crua e sem baias relativamente ao que a sociedade adulta prefere acreditar que se passa na cabeça das crianças, de qualquer criança, mas sobretudo daquelas que embateram, a dada altura, com o trauma, a negligência ou ambos. 

Rijneveld escreve sobre o luto, procurando os muitos ângulos de onde pode observar-se o impacto, numa família, da morte de uma criança. Cas, a rapariga que assume a voz narradora, é irmã dessa criança morta: Mathhies, o irmão mais velho, que saiu para patinar no gelo e acabou com o coração parado debaixo da camada de água endurecida que foi pista e armadilha fatal. Na cabeça de Cas, essa morte pode ter sido o preço divino a pagar pela sua oração irreflectida, quando rezou para que o seu coelho de estimação não fosse morto e cozinhado e proferiu a vontade de ver desaparecer o irmão, com quem estava zangada, em vez do animal. Esta voz, criada para uma narradora com apenas doze anos, é o elemento estruturante do livro e é ela que assegura a intensidade, a beleza dolorosa e as muitas polissemias deste que é um primeiro e promissor romance. O modo como Rijneveld conseguiu fazer de Cas uma personagem de múltiplas camadas, dando-lhe uma fala que se move entre o lugar da dor incompreensível e o da descoberta violenta de si própria e do mundo revela um notável labor em torno da linguagem e uma assunção corajosa da literatura enquanto implacável modo de investigação sobre a natureza humana.

O luto vivido pela família de Mathhies – pai, mãe e três irmãos (duas raparigas, uma delas Cas, e um rapaz) – é o gatilho que dispara a narrativa e sustenta o seu arco, mas O Desassossego da Noite é muito mais do que um romance sobre o luto. Essa perda intolerável, que os pais se forçam a não aceitar e os filhos recebem como uma perda dupla, terá eco noutras perdas e em várias ausências sentidas e descritas por Cas, mas a fala da narradora, íntima e torrencial, não é apenas sobre a morte do seu irmão e o impacto que tem na família. Na verdade, Cas estende o seu discurso num registo atento ao que a rodeia e, sobretudo, ao que se passa na sua cabeça e no seu corpo (dois elementos que se distinguem na leitura, mas que são, no discurso de quem fala, um só): 

«”Um dia quero viajar para mim mesma”, digo baixinho e carrego no pionés para dentro da carne macia do umbigo. Mordo o lábio afim de não fazer barulho, um fio de sangue sai em direcção ao elástico das cuecas, penetra no tecido. Não ouso retirar o pionés, com medo de o sangue esguichar para todos os lados e em casa ficarem a saber que não quero ir ter com Deus mas comigo mesma.» (pg.95)

Percebemos que muito antes de Matthies se afogar na água gelada, já Cas deambulava pelos seus pensamentos sem conseguir compreender os gestos dos seus pais, as escolhas das quais não havia reclamação que pudesse enunciar-se, a ideia de um Deus omnipresente, tirânico e vingativo a ocupar todos os lugares da casa. Com a chegada da morte, a incompreensão adensa-se e ganha novas camadas: torna-se urgente indagar sobre o que é feito, agora, desse Deus que recompensa em troca da obediência e perceber se Matthies foi o preço a pagar por algum gesto ímpio, confirmando a culpa que eternamente é preciso assumir. Para além disso, o corpo de Cas continua a mudar, num ritmo indiferente aos grandes abalos emocionais mas, ainda assim, sem deles se poder libertar. Será esse corpo o lugar de um dos campos de batalha desta narrativa, aquele que definirá o curso de todas as outras batalhas (a de Obbe, irmão mais velho, contra si próprio, a de Hanna, mais nova, contra a possibilidade de Cas se perder, não no gelo, como Matthies, mas em si mesma, e a dos pais, uma batalha sem contenda, porque Deus não costuma comparecer nas refregas). 

As observações, os desabafos e os medos de Cas enunciam-se cruamente, numa linguagem que não recorre a subterfúgios para abafar a violência que se infiltra nos gestos e nas emoções das personagens. 

É igualmente crua a descrição das funções fisiológicas da narradora e das suas abordagens ao corpo, umas vezes descobrindo-lhe novas capacidades, outras procurando aniquilá-lo de modo a não sentir as falhas que a vão definindo nem as invasões que se insinuam e concretizam em gestos alheios, aparentemente mecânicos e funcionais, mas também insidiosos no modo como instalam o medo, forçando o corte entre a pele e o pensamento para que as emoções não se descontrolem.

A crueza desta linguagem chega a ser incómoda, mas não é, contudo, gratuita, assumindo uma visão escatológica no seu sentido original, etimológico: o corpo não se descreve nas suas excreções ou nos seus humores pelo simples efeito de repulsa que isso possa gerar, mas sim pela consciência aguda de uma realidade onde vida e morte convivem fazendo tábua rasa dos tabus que procuram separá-las. Nesse convívio, Cas socorre-se muitas vezes de um pensamento mágico que lhe assegura a lógica que parece ter desaparecido com a morte do irmão, e é assim que veste o casaco de Matthies e nunca mais o tira, ou que esconde duas rãs no seu quarto, esperando que acasalem e que esse acontecimento permita que os seus pais voltem a aproximar-se um do outro. A grandeza desta narrativa está no modo como transforma essa lógica num vórtice para onde somos arrastados, sem defesas. E ainda que alguns detalhes estruturais se revelem pouco trabalhados, ou algo abruptos (como o desenlace, ou a ligação entre o aniversário de Cas e o de Hitler, com as várias derivações que daqui partem em algumas linhas narrativas), este é um romance extraordinário em tantos sentidos que é difícil não colocar em Marieke Lucas Rijneveld aquela pressão que os autores estreantes sentem relativamente ao segundo romance. Aguardemo-lo com expectativas altas, então.

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