Crítica Sara Figueiredo Costa 7 Fevereiro 2021

Cristais de diamante e farpas de carvão

Carbono
Alex Gozblau
Flan de Tal

A colecção elemeNtário, da editora Flan de Tal, nasceu para assinalar os 150 anos da criação da tabela periódica pelo cientista russo Dmitri Mendeléev, em 1869. O modelo que representa os elementos químicos conhecidos, fornecendo informações sobre algumas das suas características, é um dos instrumentos que nos permite organizar o modo como percebemos o mundo, mesmo que não consigamos ver a olho nu muitos dos itens elencados.

Alex Gozblau integra esta colecção com Carbono, um livro sobre o elemento que integra o grupo 14 da tabela periódica. Dependendo das condições, o carbono pode existir sob a forma de diamante ou ser apenas uma massa dura, ainda que facilmente erosiva, que suja as mãos que a tocam. Sob a forma de grafite, o carbono permite riscar traços no papel e é essa a primeira relação que se estabelece entre as imagens criadas por Gozblau e o elemento químico que lhes serve de ponto de partida. A preto e branco, tirando partido das sombras, do contraste e do efeito de dispersão – que permite criar zonas “sujas” em muitas imagens, onde o carvão parece ter-se espalhado em pequenas partículas – as imagens que estruturam este livro surgem acompanhadas de pequenos textos, quase legendas, estabelecendo-se entre ambos uma relação poucas vezes unívoca, sempre desencadeadora de possibilidades interpretativas, de leitura e, sobretudo, de associação livre. São frases que parecem adágios, sortilégios, breves comentários sobre a existência e o seu desnorte. E são igualmente fragmentos, como se cada página nos concedesse o privilégio de um acesso, mesmo que efémero, a histórias de outras pessoas, que não sabemos como começaram, nem como acabarão. E num modo não isento de melancolia, marcado sobretudo pela possibilidade de reconhecimento, esse acesso acaba por ser também às nossas histórias.

Falhanços assumidos, como o do pássaro caído no chão e o texto forçando a lembrança de uma suposta vitória prévia, contrastes que insinuam o medo, como o da imagem de um homem e uma criança de mãos dadas (pai e filho?), acompanhada por um texto que declara que «Seremos sempre capazes de um pouco mais de horror», notificações regulares sobre a impossibilidade de parar o tempo – e, inevitavelmente, a morte –, de todos esses fragmentos que inevitavelmente integramos naquilo a que chamamos mente se faz este Carbono. «”A partir daqui, somos inimigos”, disse ao seu passado.»
O texto acompanha a imagem de uma mão segurando no cabo de um espelho, reflectindo uma boca aberta (Falando? Gritando?). Nada mais nos é dado a ver ou a ler e a relação com as imagens anterior e posterior não estabelecem uma sequência narrativa. Podemos criá-la, apoiados no reconhecimento de algumas personagens em diferentes vinhetas, na frequente referência ao passado, ao tempo que passa, aos ecos sempre presentes entre memória e quotidiano. Com tantas declinações materiais possíveis, o carbono é uma poderosa metáfora para a nossa cabeça cheia de camadas e para a nossa decadência física, ilustrando igualmente todos os lampejos de grandiosidade, as ilusões de eternidade, os sonhos que umas vezes se concretizam e outras se estilhaçam. Existimos em tudo isso, parece, e as formas nobres como o cristal diamantino também pode ser carvão ganham aqui um significado que ultrapassa a arrumação de elementos numa tabela. Afinal, organizar o modo como percebemos o mundo nunca é um gesto concluído.