Animal perdido na floresta do mundo
Consumidos Pelo Fogo
Jaume Cabré
Tinta da China
Tradução de Maria João Teixeira Moreno
O protagonista chama-se Ismael: «Sim, como o de Moby Dick», avisa no início da narrativa a que acederemos pela sua voz. O novo romance do catalão Jaume Cabré não é uma releitura da obra de Herman Melville, ainda que possa dizer-se que nele ecoam algumas linhas temáticas desse colosso literário, entre elas a obsessão e a luta entre percepção e compreensão.
Com a mestria narrativa que já conhecemos de romances de grande fôlego, como As Vozes do Rio Pamano, ou de contos como os que integram a colectânea Quando a Penumbra Vem, Cabré assina aqui um romance breve, onde o texto persegue códigos de diferentes géneros, finge ser florilégio para logo se resolver sólido e sem costuras, toca a confissão e a deambulação introspectiva sem nunca deixar de apresentar uma galeria de personagens extraordinariamente bem caracterizadas nas suas vulnerabilidades.
Ismael está longe de querer aventuras ou desafios, mas uma das linhas de força deste romance é a pouca relevância que pode ter aquilo que assumimos querer ou não querer. O narrador vê-se como alguém que prefere a calma dos dias sem novidade, mas desconfia dos abismos onde guardará outras vontades, ou pelo menos, outros impulsos, e não será por acaso que este romance começa com um Incipit onde se reflecte sobre as falenas, as borboletas nocturnas que, atraídas pela promessa da luz, acabam por estatelar-se contra os candeeiros, ali morrendo.
Convencido de ter uma compleição mental mais próxima da osga, que espera pacientemente pelo alimento que virá dos restos mortais das borboletas, sem se deixar encantar pela luz, Ismael atravessa a sua própria narrativa para perceber que não escapa à condição de falena. Vive uma vida rotineira, pouco social, algo desencantada, a espaços. Já não dá aulas de latim e literatura desde que a directora o despediu, castigando-o pela ousadia de dar a ler um poema catalão aos alunos, em vez de resumir as aulas à literatura espanhola. Por causa de uma camisa que perdeu o botão, reencontra o seu amor de infância. E por causa de um mal-entendido, vê-se arrastado para uma situação pouco clara, um assalto, uma morte, várias ameaças: «E Ismael, estúpido que nem uma porta, esquecendo-se do pão, entrou no carro. Foi aí que tudo começou.» (pg.34) A promessa de alguma estabilidade emocional é, então, abalroada por uma sucessão de acontecimentos que são caso de polícia, roteiro de espionagem, aventura urbana, delírio filosófico-existencial, trama psicanalítica que prescinde do divã. Tudo isto sem que Ismael consiga lembrar-se de tudo o que lhe aconteceu, visto que o culminar dos acontecimentos que desencadeiam esta saga – o coração do romance – é o seu corpo caído no meio da estrada, depois de um acidente de carro, e o cérebro arrumado por uma amnésia que vive paredes meias com a capacidade de recordar alguns livros lidos, algumas frases anotadas e a pesada memória de uma infância marcada pela orfandade (a da mãe, factual e definida pela morte desta, a do pai, igualmente factual, mas de corpo presente e vivo).
Espelhando as vivências de orfandade de Ismael, uma outra narrativa vai pontuando esta narrativa central, primeiro de modo surpreendente, depois misturando-se sem atrito ao longo do texto. Nesta que parece ser uma segunda narrativa conta-se a história de uma cria de javali que perde a sua família num atropelamento e que ocupa os seus dias aprendendo, sozinha, aquilo que esperava ter aprendido com a mãe e os irmãos. E à medida que a aparição da história do pequeno javali se torna regular, talvez chamar-se segunda narrativa não faça justiça à sua importância na caracterização psicológica de Ismael e no registo do seu desnorte ao tentar perceber o que lhe aconteceu.
Ismael tem nome de caçador de baleias, mas é também personagem de ficção dentro da ficção, figura excêntrica na escola de onde foi despedido e no bairro onde vive, animal perdido na floresta do mundo. E se este é o mais breve dos romances do catalão traduzidos em Portugal, é igualmente o mais pungente, uma melancolia a fazer-se pedra de afiar à medida que o texto progride e a tornar cada vez mais cortantes as muitas lâminas que Cabré utiliza para expor a anatomia emocional do seu protagonista.
As falenas, afinal, eram metáfora insuficiente para um narrador que não se limitou a contar a sua história, mas foi obrigado a descobrir-se verdadeiramente nela, vendo sem filtros as suas falhas e contradições. Será por isso que o javali se agiganta ao longo do texto, não em tamanho, nem em idade, mas ocupando o universo mental de Ismael até se revelar retrato perfeito, um eco da infância que continua a ser presente e dos seus alçapões nunca tapados, um bicho que finge não querer proximidade, mas que acaba por despenhar-se no primeiro aceno de um qualquer conforto emocional – mesmo que seja ilusório, como os candeeiros onde se colam as asas queimadas das borboletas.