Colheita de não-ficção
Com as férias à porta, para quem pode tê-las, deixamos a literatura para mais tarde e escolhemos uma mão cheia de livros de não-ficção, todos publicados no último ano, para dar trabalho às meninges nesta época estival.
Por entre as centenas de livros que mensalmente chegam às livrarias, a ficção e a literatura acabam por predominar nas escolhas que se vão fazendo na imprensa, quer se trate da crítica ou da divulgação. Há, no entanto, boas leituras noutros domínios, do ensaio à divulgação científica, passando pelas memórias ou pelo jornalismo, naquela gaveta onde tudo cabe e a que chamamos quase sempre não-ficção. É a essa gaveta que vamos procurando entre os livros mais recentes uma mão cheia de leituras muito aconselháveis. É provável que nada causa tão boa impressão como afirmar que se vai ler os sete volumes proustianos nas férias de Verão (isto para quem as tem, claro), mas um livro de história, filosofia ou ciência podem ser companhia estival igualmente surpreendente.
Memórias de um Militante Anarco-sindicalista
Emídio Santana
Tinta da China
Referência fundamental do pensamento anarquista português, Emídio Santana não foi apenas um dedicado militante do anarco-sindicalista, foi igualmente alguém que atravessou boa parte do século XX, tendo podido observar e participar nas grandes e nas pequenas mudanças históricas, sociais e políticas que o marcaram. Nestas Memórias de um Militante Anarco-sindicalista escuta-se a voz de Emídio Santana, mas também uma plêiade de outras vozes que com ele se cruzam, dos habitantes do bairro lisboeta onde cresceu aos militantes de diferentes linhas políticas com que se foi cruzando ao longo da vida.
Sendo um registo na primeira pessoa, não faltam as considerações sobre tácticas, escolhas políticas e caminhos colectivamente definidos ao longo das décadas. Emídio Santana escreve longamente sobre a resistência ao Estado Novo, as suas detenções (uma delas rendendo-lhe 16 anos de prisão), mas também sobre o pós-25 de Abril. Neste período, findo o fervor revolucionário e a festa pela queda do regime, Santana exprime um imenso desalento pelas sendas políticas que foram sendo traçadas, nomeadamente pelo movimento sindical, ao qual permaneceu ligado. Sem nunca abandonar a celebração pelo fim do fascismo, as suas anotações sobre o que lhe sucedeu são uma importante reflexão sobre o que podia ter acontecido, mas também sobre os mecanismos de mudança e os processos sempre convulsos de reconstrução de uma comunidade: «Se os acontecimentos desencadearam tantas esperanças e emoções colectivas, se traduziram tão veemente desejo de liberdade, de equidade, digamos, de aspirações democráticas, como se teriam degradado? (…) Como se teria perdido uma experiência tão viva do anarco-sindicalismo, com o seu espírito de autonomia, que não ressurgiu para influir ou caracterizar o sindicalismo da actualidade?» (pg.340)
Caderno A4
Manuela Castro Neves
Faktoria K de Livros/ Kalandraka
Integrante do Movimento da Escola Moderna e professora do 1º ciclo do ensino básico durante mais de quatro décadas, Manuela Castro Neves reúne neste livro uma série de textos nascidos da sua experiência. Os episódios que originam estes textos não são as aulas formais, em contexto de sala de aula, turma, escola, mas outros, nomeadamente aqueles a que habitualmente chamamos de “explicações” e outros que resultam da visita da autora a bibliotecas e escolas para conversar sobre os seus livros. São episódios que põem em evidência a urgência da escuta, acima de qualquer outra coisa. Escutar alunos e alunas, não apenas no sentido de lhes dar a palavra, mas também no de procurar perceber o que sentem, com que dificuldades lutam, que sonhos têm.
Caderno A4 não é um libelo contra este ou aquele programa curricular, esta ou aquela reforma educativa (ainda que não deixe de apontar falhas ou outros caminhos possíveis nesse complexo edifício a que chamamos sistema educativo), mas antes um importante contributo para que se pense a educação de um outro modo. Num dos episódios que partilha, a propósito de um aluno a quem dava apoio, escreve a autora: «A mãe tinha-me dito que trabalhasse com ele os tempos verbais e as subclasses dos nomes, matéria que sairia no teste seguinte. (…) E vou atender ao pedido da mãe, mas não hoje. Porque hoje não consigo deixar de perguntar a mim própria que necessidade tem de saber essas coisas um menino que consegue manter vivo, mesmo que invisível, o gatinho que morreu. E de resto, qual o tempo verbal adequado para se falar do Juquinha? E em que subclasse do nome o devíamos incluir?» (pg.40) E, mais adiante, a propósito de um outro episódio: «Pensei, então, que ajudar os meninos a expressarem os seus sentimentos é uma das tarefas nobres dos educadores.» (pg.60) É isso que este livro propõe, não se demitindo da responsabilidade de pensar e discutir os muitos meios de o fazer.
Toda a Física Divertida
Carlos Fiolhais
Gradiva
É longa a lista de livros de e sobre ciência com que a editora Gradiva vem enriquecendo as bibliotecas em língua portuguesa há vários anos. O mais recente livro de Carlos Fiolhais nasce nessa editora e a ela regressa, agora em segunda vida, reunindo os volumes Física Divertida e Nova Física Divertida, originalmente publicados em 1991 e 2007, respectivamente. Toda a Física Divertida junta esses dois livros num só, em edição revista e actualizada pelo autor, mantendo as ilustrações de José Bandeira e acrescentando um prefácio de David Marçal.
Numa linguagem acessível ao grande público, Carlos Fiolhais percorre as grandes descobertas da física, explicando-as detalhadamente e com exemplos do quotidiano, recorrendo ao humor para sublinhar certos fenómenos ou episódios (mesmo que lendários, começando logo com Arquimedes a correr nu pelas ruas enquanto gritava Eureka!). Para além da ciência propriamente dita, Carlos Fiolhais assume no seu modo de explicar as coisas uma permanente relação entre conquistas científicas e contexto histórico-social, o que faz deste Toda a Física Divertida um livro fundamental para compreender o mundo em que vivemos e a sua progressão.
Este é um verdadeiro livro de divulgação científica para toda a gente, rigoroso e acessível. São 355 páginas onde podemos conhecer os fundamentos de uma disciplina essencial para nos entendermos, a nós e à nossa relação com tudo o que nos rodeia, das experiências de Arquimedes, no século III a.C., à teoria de Max Planck, fundadora da física quântica, ou às teorias de Einstein, passando por várias outras descobertas fundamentais e cientistas que as concretizaram ou aperfeiçoaram.
As Caças ao Homem
Grégoire Chamayou
Antígona
Tradução de Manuel de Freitas
Observar a história da humanidade à luz da predação de uns seres humanos por outros talvez não seja a mais descontraída das leituras de Verão… Ainda assim, reconhecermo-nos e ao mundo não é tarefa que possamos dar-nos ao luxo de interromper, pelo que a leitura deste As Caças ao Homem não tem porque ser mais ou menos recomendável para uma ou outra época do ano.
Neste ensaio, Grégoire Chamayou defende e sustenta a existência uma relação absolutamente íntima entre domínio/poder e práticas cinegéticas, analisando boa parte da história daquilo a que chamamos Ocidente (com algumas derivas para outras geografias) à luz dessa relação. Da captura de pessoas para a escravatura na Grécia à actual perseguição e captura de migrantes no Mediterrâneo, passando pelas colonizações e conquistas territoriais a partir do século XV ou pela diversão a que alguns colonos se entregavam, conhecida como “caça aos índios”, este livro não é uma leitura que dê grande alento no que toca à natureza humana, mas compreender os mecanismos de domínio e a sua crueldade talvez seja essencial para que outras relações entre pessoas se estabeleçam e possam, talvez, predominar no modo como nos organizamos para vivermos em conjunto.
A Pretensão de Antígona
Judith Butler
Orfeu Negro
Tradução de Nuno Quintas
Muito longe de qualquer vislumbre de leitura leve, Judith Butler propõe neste livro uma reflexão sobre a figura de Antígona, dissecando as muitas interpretações que sobre ela se foram fazendo e e avançando outras, contemporâneas e fundadas numa crítica que discute género, linguagem e desconstrução de categorias sociais e culturais.
A Pretensão de Antígona nasce de uma série de conferências que a autora proferiu na Biblioteca Wellek da Universidade da Califórnia, em 1998. Relendo a tragédia de Sófocles, Butler põe em causa várias leituras do mito, entre elas a que fez Hegel, que assumia o desafio de Antígona (enterrando o corpo do irmão e desobedecendo às ordens do pai) como um conflito entre as leis do Estado e as do parentesco. Complexificando a interpretação, a partir do recurso a outras categorias sociais e de leitura, a autora propõe que Antígona seja lida como uma transgressora de outras categorias para lá do Estado e do parentesco, apresentando-a como alguém a quem o direito de fala não é reconhecido, mas que ainda assim o exerce, abalando as categorias previamente bem definidas de género e comprovando o fracasso do parentesco.