Clermont-Ferrand: Notas de Viagem
A literatura talvez seja o melhor dos guias de viagem, mesmo que só lhe cheguemos depois da viagem propriamente dita.
Um livro-guia será útil para chegar a um lugar desconhecido. Nas suas páginas, informações sobre património arquitectónico, tradições, gastronomia, podem impedir-nos de ignorar certos aspectos do lugar e isso não tem de ser desvalorizado só porque tantas cabeças iluminadas decidiram que não querem ser turistas. Deixemos assim, porque a discussão em torno do turismo já seria um outro texto.
Cheguei a Clermont-Ferrand sem guia e com pouco tempo para passeios. O motivo da viagem era profissional e implicava passar parte considerável do tempo dentro da Universidade local. Li algumas coisas sobre a cidade e a região, recordando as aulas de Francês onde aprendíamos a distinguir os queijos e a consistência da massa pelas fotografias (mas sem os provarmos, o que hoje me parece uma ignomínia pedagógica), bem como a identificar regiões vinícolas, aprendendo, assim, sobre a história, a sociedade, a economia e a cultura francesas. Ainda procurei romances ou contos ambientados na cidade, mas a procura foi breve e mal sucedida. Com o francês enferrujado na bagagem, lá aterrei em Clermont-Ferrand sem nenhum livro que me tivesse ajudado a chegar lá antes do avião.
Num passeio em busca de livrarias e alfarrabistas, encontrei o livro que queria ter lido antes da viagem. L’Auvergne des écrivains d’ailleurs reúne uma série de textos de François Graveline previamente publicados no jornal local La Montagne. Dei com ele num escaparate exterior e precário de uma das livrarias-alfarrabistas da cidade, La Pochothèque Volat Dominique. Comprei-o, juntamente com alguns outros livros, e guardei-o na mochila – naquele momento, ou aproveitava o dia livre para conhecer Clermont-Ferrand, ou ficava sossegada por entre as páginas do livro sobre Clermont-Ferrand. Pareceu-me estúpido escolher a segunda hipótese.
Foi em casa, já em Portugal, que o livro de François Graveline trouxe sentidos novos à memória recente das minhas deambulações de um dia pela cidade francesa. A grandiosidade da catedral gótica de Notre-Dame-de-l’Assomption, com a pedra negra e de origem vulcânica a diferenciá-la de outros exemplares espalhados pelo território francês, voltou a assomar nas referências de alguns escritores, nomeadamente nas anotações de Stendhal, no livro Mémoires d’un touriste: «Só consegui dar um quarto de hora à catedral, que começou por volta de 1248 mas não foi concluída. Que posição magnífica! Que catedral admirável! A vista do Puys de Dôme, que fica apenas a duas léguas da cidade, estimula a imaginação.» Quando lá estive, experimentei a sensação comum de pequenez perante a grandiosa escala das torres e dos pináculos, projectados como um modo ambicioso de alcançar os céus. E mesmo sem Stendhal para me acompanhar, não pude deixar de notar a montanha lá ao longe.
A poucos quilómetros da cidade, a cadeia de montanhas que um dia foram vulcões merece a deslocação. Um funicular coloca-nos no topo do Puys de Dôme, um vulcão adormecido. Na subida, vêem-se cartazes anunciando produtores de queijo, mas o funicular não pára. A certa altura do percurso, um letreiro refere que aqueles bosques foram lugar dos maquis, a resistência contra as tropas nazis, um dos movimentos, pessoas, grupos, organizações ou instituições a quem devemos agradecer o facto de não termos vivido um descalabro de dimensões épicas. Eu agradeço, em silêncio, e só posso imaginar como seria a vida dos que resistiam escondidos nos bosques. Lá em cima, a vista permite notar o alinhamento das restantes montanhas vulcânicas quase a perder-se na linha do horizonte, confirmando a localização da falha tectónica que, há mais de dez mil anos, abalou a ainda não nascida região de Auvergne e fez subir as terras e a lava. Cá em baixo, a cidade é uma mancha de casinhas claras com um ponto escuro e pontiagudo no meio, a tal catedral que se queria grandiosa e que, vista do cimo do velho vulcão, é quase um brinquedo.
Boa parte das mais intensas descrições da cidade coligidas neste volume refere-se ao tempo do Outono e do Inverno. Há neve nas frases com que Jean Boudou acentua a sua dor no romance Livre des Grands Jours, de 1964, texto escrito depois de um diagnóstico médico que o aproximava inevitavelmente da morte, mas também nas palavras do cineasta Éric Rohmer, quando nota a sobreposição dos flocos brancos às pedras que definem a cidade. E há chuva torrencial nas descrições de Stendhal, mesmo que registada com melancólica beleza. Com excepção de uns chuviscos na última noite antes da partida, vi sempre Clermont-Ferrand com céu azul e ao abrigo de uma temperatura amena. E só no regresso a casa encontrei as palavras de Émile Zola, dando-me a ver uma cidade muito mais soturna do que aquela que atravessei: «O resto era um emaranhado de ruas inclinadas e avenidas, uma cidade de lava negra que resvalou, onde as chuvas tempestuosas deslizaram como rios sob tremendos relâmpagos.» (L’Oeuvre)
Por entre as referências literárias às ruelas que circundam a igreja de Notre Dame du Port, aos cafés da cidade e ao sossego dos jardins, uma fábrica merece algumas aparições. A Michelin, talvez a mais conhecida fabricante de pneus do mundo, foi fundada em 1889 em Clermont-Ferrand. Entre os vários autores que integram o livro, Éric Rohmer foi o primeiro a referir a fábrica, colocando-a como local de trabalho do narrador do filme Ma Nuit Chez Maud (A Minha Noite em Casa de Maud), de 1969. Não vi o filme, mas já sabia da importância da Michelin para cidade. E numa das noites, ao jantar, entre detalhes sobre os vinhos da região e referências a alguns monumentos da cidade, escuto as histórias sobre os tantos portugueses que aqui se fixaram a partir dos anos 60 do século passado. Em Portugal, a ditadura sufocava também a economia e a emigração foi a solução encontrada por milhares de pessoas para seguirem em frente. Nesta cidade francesa, a fábrica da Michelin acolheu várias dessas pessoas, acabando por enviar autocarros directamente ao Norte de Portugal para levarem para Clermont-Ferrand quem ali quisesse trabalhar. Estas histórias não vêem no livro, mas misturam-se com as que lerei mais tarde, já arrependida de não ter passado mais tempo na cidade francesa.
Os muitos excertos de textos e livros que compõem L’Auverge des écrivains d’ailleurs pecam pela pouca presença do queijo (e talvez este reparo que anoto agora seja um mero preciosismo gastronómico). Um produto tão essencial na cultura e na economia do país merecia destaque e leitura do livro faz nascer a desconfiança de que tantos autores passaram por Clermont-Ferrand sem terem tido a sorte de conhecer uma das suas grandes criações. Tive essa sorte, felizmente, e aprendi a distinguir o Cantal do Saint Nectaire – à pâte dure e à pâte molle, respectivamente, se o meu velho livro de francês ainda me acompanhasse – para logo depois assistir a uma discussão intensa sobre como o Bleu d’Auvergne, um daqueles queijos com manchas azuis e sabor deliciosamente forte, não tem qualquer semelhança com o Roquefort, sendo quase blasfémia sugerir parecenças.
Pensando melhor, talvez a cidade universitária seja um bom lugar para provar queijo, mas não é aí que está o cerne da sua produção, pelo que é natural que os escritores que por ali passaram tenham escolhido atentar noutros elementos. Sendo o livro de Graveline sobre a região de Auvergne, e não apenas sobre a cidade que visitei, é fácil descobrir que o queijo surge noutros lugares, começando pela omnipresença das vacas em pastagens a perder de vista. Albert Camus, que teve uma estada forçada na região entre 1942 e 1943, para curar a tuberculosa, fala dos animais a René Char, numa carta incluída neste livro: «Durante as últimas duas semanas tenho tentado assumir a naturalidade e a resignação das vacas deste país – sem sucesso, é claro. Não tenho feito mais do que passear por aí ou pescar trutas, com sucesso moderado.» A paisagem a que se refere é a dos arredores de Panelier e Chambon-sur-Lignon. A segunda viagem, então, já não é um regresso ao lugar da primeira através das páginas de um livro, mas antes o desejo de expandir o território a percorrer. A literatura permite fazê-lo, claro, mesmo que a muitos quilómetros de distância. Ainda assim, melhor será pensar que haverá um regresso e que nele há-de possível palmilhar outras cidades, vilas e aldeias. Agora, já com o livro-guia a postos.