Crítica Sara Figueiredo Costa 19 Junho 2024

Cidades que engolem vidas

Três Mulheres na Cidade
Lara Moreno
Alfaguara
Tradução de Helena Pitta

Há muito que a literatura espanhola se afastou da insistência temática na Guerra Civil e nas suas heranças presentes, explorando outros campos e firmando uma constelação temática que assumia essa urgência de ver, questionar e procurar outras histórias, mesmo sabendo que o passado não se esfuma assim tão facilmente. Mais recentemente, a ficção que nos chega do lado de lá da fronteira tem trazido cenários que se afastam dos centros urbanos emblemáticos (com Madrid e Barcelona à cabeça), deixando para trás as suas classes médias e altas, habitando grandes apartamentos luminosos nos bairros históricos, e focando-se noutras personagens, noutras falas, afirmando a literatura na sua vontade de ver, esmiuçar e mostrar o menos aprazível. Nessa mudança de agulha, a ficção acompanha o movimento de parte dessas personagens recorrentes até há bem pouco tempo, as da classe média, entretanto precarizada e sem conseguir fazer face ao aumento do custo de vida, à pressão do turismo e à crescente especulação imobiliária que coloca as casas citadinas, independentemente do seu tamanho e do estado de conservação, num patamar de luxo. Três Mulheres na Cidade, de Lara Moreno (com tradução de Helena Pitta) é fruto dessa realidade contemporânea e, estando a sua acção centrada em Madrid, não é difícil reconhecer um cenário que podia ser em Lisboa, Roma, Paris. Lara Moreno não escreve sobre a especulação imobiliária, nem usa o romance como manifesto pela recuperação das cidades, mas esta é uma linha estruturante da narrativa e é nela que se movimentam as personagens e as suas histórias. 

As três mulheres são Oliva, espanhola, Damaris, colombiana, e Horía, marroquina. A cidade é a mesma para as três, mas se há coisa que este romance explora com eficácia é o facto de as cidades, à imagem do mundo, não serem o mesmo sítio para pessoas de origens e classes diferentes. O cenário será o mesmo, e neste caso o cenário é o bairro La Latina, no corção de Madrid, mas as formas de o habitar, percorrer e sentir são distintas e essa distinção não decorre da simples percepção individual, mas antes das imposições sócio-económicas que atravessam a vida de cada pessoa.

É Oliva quem primeiro entra em cena, procurando perceber o turbilhão em que a sua vida se transformou. Um novo amor, chegado com todas as esperanças e paixões, revelou-se um abuso permanente, manipulação sem descanso, violência à espera de acontecer. Com o passar dos dias, vamos percebendo que essa violência, afinal, acontece desde o início, mas condicionados que estamos para relacionar violência com murros e pontapés, vamos deixando andar, tal como Oliva. 

No mesmo prédio onde vive Oliva (e a sua filha, umas vezes habitando com a mãe, outras indo para casa do pai) com o seu companheiro abusivo, Damaris é visita frequente. Não vive ali, porque seria impossível para uma colombiana que emigrou para Espanha em busca de uma vida melhor, e cuja fonte de rendimento é o serviço de limpeza e cuidado das crianças em casa de uma família, pagar uma renda no centro de Madrid. O prédio onde tudo acontece é, aliás, um bom retrato da pirâmide social, os apartamentos maiores e com varanda habitados pelos mais ricos, os outros pela classe média que ainda se vai aguentando, mas que suspeita que as rendas deixarão de ser praticáveis dentro em pouco, e as áreas de serviço frequentadas pelo novo lumpen proletariado, essa força de trabalho composta por migrantes de diferentes origens, quase sempre sem contratos, com salários baixos, trabalho árduo e nenhuma certeza. E é aí que entra Horía, chegada de Marrocos, tendo passado pela apanha da fruta num desses campos de trabalho que só por pudor não classificamos como forçados. Horía habita o apartamento “da porteira”, um esconso no rés-do-chão, pouco ventilado, pouco iluminado, a troco da limpeza da escada e do pátio, do cuidado das plantas e de um silêncio que não traga perguntas a quem a contratou sem lhe assinar um contrato. 

As vidas quotidianas destas três mulheres não se cruzam de um modo efectivo, mesmo quando as mulheres se encontram nas escadas do prédio, mesmo quando Damaris ouve o choro intenso de Oliva e tenta aproximar-se, mesmo quando a filha de Oliva quer ser amiga de Horía e esta não arrisca aproximações afectivas com quem quer que seja, por sentir que não é o seu lugar. Os olhares que se trocam entre as três são baixos, fugidios, uma coisa de passagem, e esse é o osso deste romance, uma partilha de espaço que nunca chega a ser comunidade, porque os papéis pré-definidos, impostos por um sistema social e económico atravessado pela xenofobia e pelo classismo, não o permitem. Essa consciência ganha corpo no texto, com as histórias de cada uma das mulheres desenrolando-se separadamente, qui e ali com alguns pontos de contacto sempre fugazes. 

Cada uma destas três vidas é uma corrida de obstáculos que o texto vai expondo de modo cru, mergulhando nos pensamentos das personagens e colocando-os em confronto com o quotidiano. Damaris e a precariedade, o despejo por parte do senhorio, a saúde frágil e a incerteza relativamente ao que lhe reservarão os patrões (sempre tão bonzinhos, até um contrato lhe fizeram, o que não os impede de a dispensar abruptamente quando a pandemia de Covid 19 se instala, não lhe dando tempo, sequer, para se despedir das duas crianças de que cuida quase desde que nasceram). Oliva e a violência crescente, o domínio imposto por um homem impune, a vergonha de se ver enredada numa teia tão sombria. Horía e o filho que não responde às chamadas, terá feito a travessia do Mediterrâneo nalgum barco clandestino, terá ou não chegado a Espanha, estará ou não vivo.

A narrativa que aqui se constrói não traz um final fechado, nem sequer um momento temporal onde alguma conclusão se afirme. Há linhas que se encerram, sim, mas há sobretudo a afirmação do texto como um corte temporal a que temos acesso, permitindo-nos acompanhar a vida das três personagens e das suas teias relacionais ao longo de um certo tempo, sempre com o passado a iluminar o presente, mas sem que saibamos que futuro as espera. Nunca sabemos e, nisso, Três Mulheres na Cidade cumpre-se como exercício mimético de uma vida, de várias vidas. Nisso e no modo como expõe as cicatrizes diárias que uma cidade movida a lucro, especulação e exploração inflige a quem a habita, mesmo aí vincando diferenças, expondo o pequeno privilégio frente à intensa precarização. Não faz falta um final, que supomos pouco feliz, porque não se trata de entreter o mundo com uma história, mas antes de lhe exibir as crateras e os lugares sombrios, tudo ali, ao lado da Gran Vía, das belas praças, das tapas e dos monumentos imperdíveis.

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