Carta a um senhor em Buenos Aires
Caro amigo,
Encontrei a sua carta. A decisão de deixá-la aqui em casa para ser lida no meu regresso, não foi acertada. Se a tivesse recebido em Paris, o provável era acreditar em tudo o que descreveu. Teria reunido os meus parcos recursos e comprado um bilhete no primeiro transporte que me trouxesse de volta. Ainda assim, malgrado, especialmente do trabalho de arrumação que empreendeu Sara, tendo até que mandar forrar o sofá verde, desta feita com um tecido garrido de flores, quero crer que os coelhinhos não tenham sido capazes.
Escrevo-lhe hoje não apenas porque chove, mas, sobretudo, porque como você, gosto de escrever cartas. Em particular aquelas que os correios nunca conhecerão. Também para dar conta que a ordem que julgou desequilibrar continua inabalada, os livros, os dicionários, alguns um pouco roídos nos cantos… acontece. Você me avisou. Quase tudo como sempre. Por outro lado, foi um contentamento descobrir um novo sistema nas estantes superiores. As obras passaram a estar organizadas por cores, não as das capas, mas as dos títulos. Quem sabe torne evidente a pouca praticidade que martiriza os autores: o Livro Azul ficou para os filósofos; O Vermelho e o Negro encabeçando a lista dos franceses desde século XIX; Uma Flor Amarela, você guardou para os argentinos e para os poetas, que tanto precisam de vitamina D. Fez bem.
Sara esvaziou a sua gaveta dos trevos. Plantou-os na base dos vasos. A minha sacada parece agora um mini jardim luxuriante, onde as plantas mais altas, o boldo, a costela de Adão, a beladona, têm uma base coberta por um tapete verde. Sara me disse que os trevos podem trazer sorte (seja lá o que isso for). Guardei alguns no bolso, com duas bagas. Ela sabe dessas coisas prosaicas, é ela quem se preocupa. Que impede a desordem, mantém as estruturas, as formas e, na sua inteligência, sabe perfeitamente preparar mezinhas para as mazelas ou onde colocar as almofadas no sofá renovado para deixar a sala mais confortável. Nunca fui eu.
Luís e Jorge comentaram que não aceitou nenhum convite para sair, nem uma única noite, nem para uma caminhada aqui na vizinhança. Julgaram que estava imerso em papéis, traduções e relatórios. No entanto, hesitaram apreensivos quando ouviram o nervosismo na sua voz, a querer desligar a chamada quanto antes, como se uma urgência repentina o tivesse tomado. Disseram. Sei que não foi nada disso, ou talvez sim. Respirar a angústia ao tentar contê-los. O número perfeito teria sido dez, a vida teria se encaixado neles. Porém, onze. Onze, que podem ser doze ou treze coelhos brancos, pretos e cinzentos a saltar.
Lembrei-me do vento. Você ainda se recorda que a cidade fica ventosa no fim do inverno? É um desafio encontrar um xale que permaneça nas minhas costas. Com tantas virtudes para herdar, foram-me calhar justo os ombros descaídos, incapazes de segurar uma bolsa. Experimentei echarpes e mantilhas de vários materiais, os preferidos continuam a ser os de seda, mas não dava. Não havia orçamento que suportasse os desvarios do vento nas minhas espaldas. Às vezes, quando menos esperava, surgia uma rajada. Rodopiava à minha volta e zás, lá se foi mais um pano para água, girando colorido, enquanto era levado pela correnteza. Todos os dias estava obrigada a olhar cuidadosamente a previsão da meteorologia para tentar evitar maiores prejuízos financeiros e constrangimentos, como quando um dos meus tecidos voadores se enganchou no pescoço de um religioso que passava de bicicleta. O homem da batina não parou, continuou pedalando pela margem do Sena em total júbilo, acelerando o ritmo ao sentir a minha peça esvoaçante agarrada na sua garganta. Não sei se tamanho contentamento terá caído bem aos deuses, pobre homem. Sabe, a falta de consciência é comum na maioria das pessoas, embora aquele pescoço se regozijasse como alguém que, numa manhã gelada, se enrola num xaile de lã, cheio de franjas, sem pretender rezar. Senti-me culpada, não queria expor as pessoas aos meus desatinos com Zéfiro.
Fiz uma pausa. Coloquei dois dedos no bolso, em forma de pinça, agarrei uma das bagas, com um trevo, abri bem a boca e enfiei a tal sorte lá para dentro. Depois saí. Tive de ir à rua buscar uma encomenda que Sara não deveria tratar por mim. No retorno, evitei o elevador. No patamar da escada, entre o segundo e terceiro andar, senti uma queimação no peito que subia até a garganta. Pus a mão no decote, tive medo de que justo naquele momento pudesse ter contraído essa estranheza dos coelhinhos.
Retomo então a escrita, trazendo um chá de beladona comigo. Pus bastante açúcar, parece o recheio de um alfajor. O nosso combinado era que, aqui em casa, as horas seriam desimportantes. Um gole e as ânsias de qualquer um diminuem, começa-se a aceitar a terrível e problemática condição humana (mais uma colherada de açúcar, por segurança). Ontem foi meu aniversário de novo, pensei em Montparnasse, de como gostava de os visitar nesse dia. Beauvoir continua a mais concorrida, tem bilhetes de metro, caixas de fósforos, maços de cigarro e muitos recados de meninas. Sontag está bem pertinho dela, embora pareça mais sóbria. Talvez por isso só lhe deixem umas pedrinhas. Acabei por me sentar um pouco junto de um cronópio esverdeado. Era simpático, um tanto calado, apesar de se fazer acompanhar pelas suas duas esposas. Estivemos ali os quatro, a pensar soluções menos trágicas para as preocupações que nos assolam (a todos). Não me deitei na lápide com eles porque havia chovido, estava um pouco úmido e eu já havia perdido o xaile pelo caminho, não tinha o que pudesse estirar.
Se a sua carta me tivesse chegado em Paris, teria sugerido que levasse os coelhinhos para o jardim, por detrás do prédio, até a minha chegada. Ali está cheio de livros que atiro pela janela quando os autores submetem as personagens as suas manias. A vida e o caos dançam juntos, não precisamos de mais autores daqueles. Está lá uma pirâmide generosa, que se nota à distância, e seria ótima para afiar os dentes dos coelhos. Sara poderia ter ajudado a carregar o armário onde dormiriam durante o dia. Quem sabe alguém os adotasse, tão bonitos o raio dos coelhinhos. Tão exigentes. A noite chegou depressa, tenho de ir andando. Ainda que não precise mais passar no Instituto do Mar e da Atmosfera para estar a par dos ventos que me perseguiriam, faz-se tarde. Que bobagem, as horas. Lembrei que teremos toda a eternidade. Escrevi menos do que desejava…
Com carinho,
Andrée