Saramaguiana
por José Saramago e Baptista-Bastos 22 Fevereiro 2024
© Arquivo FJS

Baptista-Bastos, 90 anos

Neste dia 27 de Fevereiro, o jornalista e escritor Armando Baptista-Bastos (1934 – 2017) completaria 90 anos. Para assinalar a data, a Blimunda deste mês recupera dois textos que José Saramago escreveu sobre o amigo, e um texto de despedida de Baptista-Bastos aquando da morte de Saramago.

Bem contados, são mais de trinta anos de uma amizade sem falhas, de uma estima que para demonstrar-se nunca precisou de recorrer à retórica das grandes palavras. Convicções partilhadas, sentimentos comuns, visões do mundo e da vida em muitos aspectos coincidentes, são os materiais que vieram dando forma, substancia e perenidade à minha relação com Baptista-Bastos. Tenho a certeza de que nunca nenhum de nós se comportou de modo a decepcionar o outro, e as divergências, quando as houve, ainda nos aproximaram mais: é para isso que a compreensão e o respeito existem. De pessoa a pessoa, mas também de escritor a escritor, o escritor que ele e e o escritor que eu sou. E de jornalista a jornalista, este que o foi e ele que o será enquanto viver. Quando durante um breve período da minha vida andei por redacções de jornais, aprendiz já sem idade para o ser, a figura de Baptista-Bastos foi para mim (já o era para muitos outros) uma referência constante, não só do ponto de vista da competência profissional, mas também do ponto de vista de uma ética da responsabilidade. Uma opinião de Baptista-Bastos foi sempre uma manifestação de firmeza e, muitas vezes, de coragem pessoal. Uma noticia de Baptista-Bastos foi sempre uma lição de rectidão e clareza. Uma entrevista de Baptista-Bastos foi sempre e continua a sê-lo- um exercício de virtuosismo, mas, atenção, trata-se de um virtuosismo que tanto serve ao entrevistador como ao entrevistado: as perguntas não sugerem as respostas, abrem-lhes caminho. Um caminho que avança em duas direcções, que tanto vem para fora como vai para dentro, quer dizer, um caminho que é tão capaz de mostrar o entrevistado ao leitor como de revelar o entrevistado a si mesmo. Este livro será certamente mais um exemplo desta arte subtil que é a entrevista nas mãos e na palavra de Baptista-Bastos.

José Saramago no prefácio para o livro Fado Falado de Baptista Bastos, 1999

© Arquivo FJS

Manhã de passeio, manhã de palavras. Conheço o Baptista-Bastos há muitos anos, somos amigos desde então, portanto temos conversado muitas vezes, mas nunca desta maneira, com esta franqueza, a despejar o saco. Uma ilha, mesmo não sendo deserta, é um bom sítio para falar, é como se estivesse a dizer-nos: «Não há mais mundo, aproveitem antes que este resto se acabe.» Levei-o ao Mirador del Río, aos Jameos del Agua, a Timanfaya, ofereci-lhe tudo isto como se fosse meu, a paisagem, o mar, o céu, o vento. Amanhã regressará a Lisboa, aos seus velhos lugares, à Ajuda onde nasceu, à Alfama onde mora, e, aí, o melhor que eu posso desejar-lhe é que feche os olhos de vez em quando e peça à memória a graça de restituir-lhe aquelas sombras de nuvens que passavam por baixo de nós na falda da montanha fronteira à Graciosa, as escarpas roxas de Famara, ao crepúsculo, entre a neblina, a bocarra hiante da Caldera de los Cuervos, o desenho japonês de duas palmeiras sobre a anca deitada duma colina. Que essa memória não lhe falte, e gozará da vida eterna.

José Saramago nos Cadernos de Lanzarote, 17 de março de 1995

Tu me manques», escreveu, no último mail que me mandou. Conversávamos assim, quando não em directo, na casa dele, no Arco do Cego, num restaurante, o Solar dos Presuntos ou o Farta Brutos. Estão lá, nas paredes, retratos nossos, da Isaura e da Pilar. «Tu me manques»: fazes-me falta, numa tradução muito literal. Mas era mais do que a expressão de uma amizade calorosa, com mais de quarenta anos.

Baptista Bastos: «Tu me manques», in Palavras para Saramago