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As jaulas nossas de cada dia
No Museu do Oriente, em Lisboa, o fotógrafo taiwanês Chou Ching-Hui encena o espectáculo da vida quotidiana entre ecrãs, obsessões com ideais de beleza inatingíveis e uma solidão demasiado ruidosa.
As cores saturadas, a focagem precisa e os detalhes dispersos por móveis, objectos do quotidiano, comida, parecem invocar uma estética kitsch, mas a invocação desfaz-se ao primeiro olhar atento para qualquer uma das fotografias que compõem Animal Farm, do fotógrafo taiwanês Chou Ching-Hui, que agora se exibe no Museu do Oriente, em Lisboa. O universo que aqui se encena – e encenar é palavra-chave – é desconcertante, e não deixa de se socorrer daquilo a que chamamos cultura popular, com o consumo à cabeça, mas aquela que é a primeira exposição individual de Chou Ching-Hui na Europa nada deve ao jogo entre o mau gosto e a ironia que alimenta o kitsch.
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Animal Farm compõem-se de nove fotografias de grande formato, às quais se associam fotografias de menor dimensão, vídeos e instalações. Cada uma dessas nove fotografias principais, chamemos-lhes assim, retrata um momento cuidadosamente encenado onde se declinam diferentes aspectos da vida contemporânea, da necessidade de permanente comunicação alimentada pelas redes sociais à projecção de imagens de perfeição associadas ao corpo. A apatia gerada pela rotina e pela omnipresença dos ecrãs, o excesso e o lixo que se vão acumulando, resultado de uma produção e um consumo que se auto-alimentam, a doença mental atravessando tudo e todos, a falsidade do mercado da arte, o envelhecimento assumido como invalidez, tudo isso atravessa as imagens encenadas de Chou Ching-Hui, convocando um desconcerto e exigindo uma reflexão, sempre a partir de um elemento comum a todas as obras: cada um dos cenários onde posam os modelos por entre uma imensidão de objectos, detalhes e adereços está instalado nas jaulas ou noutros espaços destinados à exibição dos animais de um jardim zoológico. É um cenário secundário, no que à criação cenográfica diz respeito, mas acaba por ser o principal, na medida em que esse é o ponto de partida para esta série, a ideia de que estaremos todos encerrados em jaulas, vendo-nos uns aos outros a partir de uma noção de liberdade que há muito e por muitos motivos se esfumou.
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Durante três meses, Chou Ching-Hui e a sua extensa equipa instalaram-se alternadamente nos jardins zoológicos de Hsinchu e Shoushan, em Taiwan, criando os seus cenários detalhados em jaulas e outros espaços destinados ao habitat artificial dos animais que ali habitam. Antes e depois desse momento, houve muito trabalho preparatório, da angariação de fundos à preparação pormenorizada de todas as cenas, com a respectiva iluminação, os adereços, as posições dos modelos e actores. No total, o fotógrafo dedicou cinco anos da sua vida a este trabalho, depois de ter realizado outras séries fotográficas, como Frozen in Time: Images of a Leper Colony, onde explora as ideias sobre a doença de um conjunto de pessoas afectadas pela lepra, ou The Yellow Sheep River Project, que regista o quotidiano das crianças que habitam uma zona rural da China, na área de Gansu.
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Dividida em três núcleos, «Consciência do Comportamento Colectivo», «Consciência da Sobrevivência» e «Consciência do Corpo», Animal Farm dialoga com o texto homónimo de George Orwell, sobretudo no que ao controlo diz respeito – aqui, não é um Big Brother, é algo mais difuso, repartido entre o lucro, os processos que atribuem poder a umas pessoas e não as outras e o controlo inter-pares que passa pelos padrões de beleza e moral, entre outros – mas convoca também a herança das fábulas, onde animais com faculdades humanas, nomeadamente a linguagem e a consciência, dissertavam sobre o mundo e as relações. E é a consciência que atravessa todas as peças desta obra, não como mera faculdade humana, mas antes como elemento dúplice, de um lado força vital e existencial, do outro, condenação eterna, como no mito de Prometeu.
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Um outro elemento está presente em todas as nove imagens principais de Animal Farm, bem como no próprio espaço expositivo, em modo de instalação. É um bonsai, a árvore miniatura que fazemos crescer com a forma que mais nos agrada, com parte do tronco cingida por anéis de metal. Num filme realizado pela La Galerie Paris 1839, de Hong Kong, Chou Ching-Hui revela a origem desse bonsai restringido pelo metal. Numa das muitas entrevistas preparatórias de Animal Farm, o fotógrafo entrevistou um psicólogo e, entre as histórias que o profissional de saúde mental lhe contou, estava a de um paciente que, a meio de uma sessão de terapia, lhe disse que a árvore que estava ao seu lado estava a sofrer. O psicólogo pediu-lhe para desenvolver a ideia, talvez naquele tom que os psicólogos têm para tentar extrair material oculto de uma afirmação simples, mas o que o paciente queria dizer era exactamente isso: a árvore, um pequeno bonsai que se exibia numa mesinha do consultório, estava a sofrer, porque para uma árvore crescer como queremos que ela cresça, é preciso restringir-lhe os movimentos de crescimento, atá-la, prendê-la, orientar os ramos que aí vêm no sentido que nos parece melhor. Foi aí que surgiu a ideia deste bonsai preso por aros, elemento que atravessa todas as fotografias da série, como explica o autor neste filme:
Animal Farm é também um labirinto visual, com cada caminho a iniciar-se com uma fotografia principal, encenada numa das jaulas ou outros espaços delimitados dos jardins zoológicos de Hsinchu e Shoushan, e a abrir percursos possíveis para fotografias secundárias e vídeos curtos que se focam em personagens e detalhes dos cenários principais. Nestas imagens, estáticas ou em movimento, somos nós os animais visionados nas suas jaulas e cada peça de Animal Farm é um espelho, umas vezes deformador, outras hiper-realista e multifacetado, que nos dá a ver a nossa própria vida em sociedade – integrando-a ou procurando fugir-lhe. A cor, os objectos que criam um imenso de fogo de artifício visual e as personagens bem caracterizadas e em poses estudadas confirmam que toda esta série é uma permanente encenação, mas não há como fugir à certeza do embate: o espectáculo, aqui, é a vida nossa de cada dia.