As flores
Estava um calor de lascar. Marta abriu a porta do apartamento ofegante a transpirar. Depois das fortes chuvas dos últimos dias, a luz não havia sido plenamente restabelecida. Os técnicos da companhia de eletricidade asseguraram que a reparação estaria concluída até ao final da tarde. Ora, Marta não poderia esperar tanto e subiu os oito andares pela escada de serviço, carregando as sacolas com as compras para o jantar daquela noite. Claro que bastava ter encomendado tudo na Deli, a duas quadras de distância do seu maravilhoso apartamento com vista para o Parque onde vivia com o marido Francisco. Ainda por cima, a loja faria a entrega. Porém, o marido de Marta era um homem com as suas convicções e jamais serviria comida pré-fabricada (referia-se assim) para os seus convidados.
Francisco encarregara Marta de ultimar os preparativos. Entre eles, buscar as várias encomendas que fez por telefone em estabelecimentos nos quatro cantos da cidade. O magret, os damascos frescos, as cerejas da Polônia, o creme de leite vegetal orgânico (havia um convidado vegano) e os vinhos. Apesar do prato principal ser francês, Francisco era louco por vinhos australianos. Marta teve de se deslocar a uma garrafeira particular nos arredores da cidade para conseguir os tais vinhos importados para a harmonização elaborada pelo marido para o inadiável jantar.
Outro aspecto importantíssimo eram as flores. Não era possível receber sem um generoso e impactante arranjo de flores na mesa. As flores eram essenciais, mas esse era o departamento de Marta. Era sempre ela quem mandava preparar os arranjos mais elegantes. Já uma tradição entre os amigos. Marta ficava envaidecida com os elogios e Francisco entendia que aquele era o momento em que deveria deixar a sua esposa brilhar um pouco. Estava convencido de que era a fórmula do sucesso para um relacionamento tão duradouro: deixar Marta acreditar estarem equiparados. Evidente que jantar nenhum seria um sucesso apenas com flores. O ramalhete era um amuse-bouche para o que de verdade interessava: a sofisticação da sua cozinha.
Mal adentrou com os sacos, a copeira foi ajudá-la. Marta ficou a olhar para Francisco pensando porque não havia pedido a moça para descer e a auxiliar. E enquanto a jovem pousava as compras na bancada central da cozinha, Francisco conferia se Marta havia sido capaz de trazer todos os itens da sua extravagante e enorme lista. Infelizmente não faltava nada, pensou Francisco.
A moça serviu um grande copo de água gelada para Marta e a seguir foi polir os talheres na sala de jantar. Marta sentou-se na ponta do sofá e quanto mais água bebia, mais transpirava e mais vermelha ficava. Um calor insuportável! O ar-condicionado não funcionava e mesmo as janelas estando abertas, o bafo quente dominava o espaço. Francisco, com os óculos na ponta do nariz, deliciava-se lendo os rótulos dos produtos. Também ele pingava suor, apesar de ter os cabelos molhados do banho.
Marta decidiu tomar uma chuveirada. Levantou-se passou pela sala de jantar e disse a copeira, que trazia a camisa um pouco para fora das calças e colada às costas de suor, que polisse também o vaso de prata inglesa para ela colocar as flores. Então lembrara-se: não passara na florista para compor o arranjo. Que transtorno! Teria que sair outra vez e sobretudo subir os oito andares de volta. Era provável que o conserto da luz não estivesse concluído quando regressasse. Suspirou fundo e dirigiu-se para a sua suíte. Ao menos tomaria um banho antes de sair.
Quando entrou no quarto, acendeu o interruptor. Força do hábito. Viu uma tolha em cima da cama. Atravessou o closet organizado por cores, tamanhos, estações, objetos milimetricamente posicionados como Francisco exigia. Continuou em direção ao banheiro. Quando despia a blusa, parou. Voltou para trás, atravessou o closet na penumbra, foi até a cama e agarrou na toalha. Estava molhada.
O seu coração bateu descompassado. Colocou a toalha de volta. Ficou imóvel olhando para toalha com a brisa quente invadindo o cômodo. Voltou a apertar a toalha. Era fofa. Os dedos se afundavam nos quinhentos gramas de algodão. Sentia a umidade nas palmas da mãos. O vinho australiano veio à sua cabeça. Começou a ter dificuldade para respirar. O calor parecia intensificar a sua decepção. Não, não era raiva o que sentia. Talvez um pouco, mas de si mesma. Deixou a toalha em cima da cama. Foi até ao lado do closet de Francisco, ficou prostrada. Pensou em atirar todas as roupas para o chão ou só trocar a ordem dos relógios no expositor. Foi deixando a tristeza subir devagar pela ponta dos dedos e toma-la. Não fez nada.
Saiu do quarto, caminhou pelo corredor, detendo-se por segundos, vendo a camisa molhada ainda um pouco para fora das calças e colada às costas da moça que continuava polindo os talheres. Continuou. Agarrou na chave do carro e enquanto Francisco separava os vinhos, Marta abriu a porta. Olhou para a sua casa e nunca regressou com as flores.