As férias, por José Saramago
Hoje, venho falar das férias: é o tempo delas, como se diz que é o tempo das cerejas. Outra árvore dá estes frutos, e a mesma árvore os arranca: os dias as trazem até nós, os dias as levam. Neste escoar se vai o tempo, mas enquanto as férias se aproximam tudo é desejá-las, fazer projectos, embalar ilusões. Chegado o dia, temos diante de nós um espaço vazio à espera, como uma grande sala que é preciso habitar. Que vamos pôr lá dentro? Há quem passe uns dias na terra, quem se atreva ao estrangeiro, quem conte os escudos para o toldo da praia. Há também quem não saia de casa e fique a ver, todas as horas do dia, a rua onde mora. Seja como for, os dias de férias ganham de repente um valor que os outros não tiveram. São dias totalmente disponíveis, à mercê da imaginação e das posses de cada qual. O tempo desligou-se da mecânica do relógio, é uma dimensão não delimitada, informe, um pedaço de barro diante das mãos que o vão modelar.
As férias são também uma obra de criação. Não espanta, portanto, que no limiar delas um súbito temor nos intimide. Aquele intervalo entre duas representações, aquela clareira rodeada de floresta negra por todos os lados — que iremos nós fazer do barro do tempo? Se vamos à terra, dois dias bastam para rever as pessoas conhecidas, os sítios e a família; se passamos ao estrangeiro, que resultado tiraremos de quatro mil quilómetros em oito dias? E se vamos à praia? E se ficamos em casa? Depois, tudo são complicações: horários, refeições indigestas, noites mal dormidas, histórias velhas de família, cansaço de viagens de ida-e-volta, raiva de estar fechado. Ah, as férias. Quando elas acabam, ficam-nos umas lembranças desmaiadas, como de um sonho antigo. Nada aconteceu como tínhamos imaginado: choveu, veio uma dor de dentes, os museus eram muitos, as paisagens não eram tão belas como as fotografias delas, gastou-se muito dinheiro — ou não houve sequer dinheiro para gastar. E recomeça-se o trabalho em rigoroso estado de cólera, porque pior do que ter tido e não ter já, é ficar aquém do que se sonhou.
No fundo, esse sonho, vezes e vezes renovado e outras tantas frustrado, é apenas o desejo inconsciente de repetir as únicas férias maravilhosas que já tivemos: as da infância — esses infinitos meses para os quais não havia projectos, porque então não os fazíamos e porque, mesmo antes de vividos, já eram realização. O mundo estava todo por descobrir — e o mundo cabia no círculo que os olhos traçavam. Duas árvores e um charco: a Europa. Um caminho entre rochedos: a América. Ou a Ásia. Ou a África. Nadar ou navegar no rio era o mesmo que atravessar o oceano. E descobrir um ninho abandonado valia bem a caverna de Ali Babá. Por isso, hoje, as férias não podem ser repouso. Queremos, à viva força, descobrir o mundo, como se fôssemos nós os primeiros: outra coisa não significa a nossa satisfação quando obrigamos um amigo a confessar que não viu, no Louvre, aquela estátua grega que, no nosso entender, vale a viagem.
Tudo isto são ilusões. O mundo está visto e decorado. Ninguém descobrirá a Europa, e a estátua grega, afinal, é uma pobre cópia romana. Mas que importa? Aqui solenemente declaro que, este ano, as minhas férias serão, em valor de revelação e descoberta, iguais àquelas em que, com os olhos novos da infância, me aconteceu encontrar uma fonte que ninguém conhecia. E se este ano não for, será para o ano. Porque a fonte lá está.
* Esta crónica integra o volume Deste Mundo e do Outro, cuja 1ª edição é de 1971