AaaHHH!
Guilherme Karsten
Fábula
Quem não conheça Boleia, o anterior álbum do autor brasileiro editado em Portugal, pode prever um final programático para o mistério que se alimenta ao longo da narrativa. O mundo parece estar a partir-se literalmente aos bocados: icebergues que se soltam, montanhas que ruem, animais que sofrem mutações. Alguma semelhança com a realidade?
Quando se espera uma revelação da maior seriedade, acrescenta-se novo elemento: é um terrível ruído, avassalador e jamais identificado, o que provoca tamanhos danos ao mundo.
Neste ponto, algo pode ressoar a O homem da lua, de Tommi Ungerer. O aparato que se cria envolve alta tecnologia e máximo interesse popular. Todos anseiam por uma história extraordinária. Porém, a única pista encontrada revela que o perturbador ruído vem de um lugar concreto algures numa rua do planeta terra, retirando logo parte do mistério de ficção científica que existia enquanto hipótese.
De página em página o leitor aproxima-se da inusitada revelação que é, ao mesmo tempo, uma hipérbole de uma situação tão comezinha quanto comum. Não há quem não se identifique com ela. E aqui reside o clímax da intriga, neste misto de desilusão por não existir nada de realmente novo e transformador para ser visto, vivenciado e partilhado e de surpresa de auto-reconhecimento.
O humor de Karsten é fino e desfila neste jogo de expectativas goradas pondo a nu alguns traços do comportamento individual e coletivo, como o da atração pela tragédia dos outros ou a necessidade de protagonismo. Quais são as nossas reais prioridades? O que nos move? O que levamos a sério? O que nos motiva?
No final da narrativa, quem teve um comportamento mais ridículo ou desajustado: nós, que estamos com a multidão ou a criança?
Recorrendo a colagens vintage de figuras a preto e branco, o autor povoa um espaço urbano colorido e dinâmico com a estranheza de um lugar ou uma situação atemporal. Detalhes de expressões combinam com poses, e adereços apostos que lhes dão um ar cómico e acentuam o seu empenho em resolver o mistério.
As páginas preenchem-se consigo diversos elementos, padrões colados, objetos, formas, figuras e ainda tipografia mais ou menos destacada. Nesta riqueza de disposição mais ou menos organizada também flui o ritmo narrativo, entre espanto e lógica descritiva. Há muitas mensagens subtis na ilustração, de referência histórica e política, para além de pormenores que vão ao encontro do texto e da intriga.
O humor precisa-se e Guilherme Karsten não desilude, oferecendo paradoxos, hipérboles e absurdos em camadas de leitura que podem sempre ser lidas em sentido estrito ou mais amplo, dependendo dos conhecimentos prévios e da competência de cada leitor. Consegue sobretudo deixar caminhos para cada um percorrer sem cair na tentação de exercer qualquer condicionamento moral.