Crítica Sara Figueiredo Costa 27 Julho 2023

A vida por herança

Alegorizações
Jan Morris
Tinta da China
Tradução de Raquel Mouta

Este é um livro póstumo, mas não daqueles que assim o são por acidente, encontrados depois da morte de quem os escreveu e dados à estampa por familiares ou editores que assumem que essa seria a vontade de quem partiu. Alegorizações foi sendo composto por Jan Morris ao longo dos últimos anos com a intenção de ser publicado quando a autora já cá não estivesse (o que aconteceu em 2020, ano em que morreu, aos 94 anos): «Por isso, embora esteja a escrever estas palavras num dia soalheiro de Primavera, no País de Gales, e veja cordeiros pela minha janela e a Elizabeth me esteja a chamar neste preciso momento para almoçar, quando me lerem já terei partido!»

A morte, aliás, é tema que atravessa todo o livro, mas nunca de uma forma tristonha ou tétrica, antes como reflexão permanente sobre o nosso inevitável (e sempre desconhecido) prazo de validade. Percorrendo a meia centena de textos que compõem esta obra final, e que versam sobre assuntos tão variados como a ideia de nacionalidade, os espirros ou as muitas cidades e regiões por inde a autora passou, percebe-se que essa reflexão é feita em modo celebratório. Morris fala do passado, recolhendo memórias de diferentes momentos e lugares, mas nunca deixa de sentir-se ancorada no presente, essa ideia mais ou menos plástica de uma permanência que é enquanto for. A aproximação do fim, desse momento em que deixará de ser, está sempre à espreita, mas o modo como a autora regista felicidades, descobertas ou aborrecimentos confirma que isso não é um exclusivo de quem já acumula algumas décadas de vida. Esse fim sempre esteve à espreita e o que estas Alegorizações constroem nesse discurso que mistura memórias com reflexões absolutamente presentes é um extraordinário equilíbrio entre a consciência desse facto e o gesto vital de não lhe dar demasiado crédito.

O que une estes escritos breves é o modo tão íntimo como Morris escreve para quem a lê – mas num registo descontraído, como quem partilha tudo isto numa esplanada de Trieste, em frente a um copo de vinho, com qualquer pessoa que se sente e tenha curiosidade de escutar – e a procura da alegoria nos grandes momentos da vida, mas também nos gestos mais banais ou nos cenários absolutamente despojados de grandiosidade. Num dos textos, uma descrição plena de humor sobre um cruzeiro pelo Mediterrâneo que Morris baptizou de Geriatrica, a autora encontra nas águas o reflexo de um passado mítico e nele vê uma alegoria da brevidade da vida: «“Como enfrentar o reumatismo” foi uma das nossas palestras instrutivas, e quanto a mim senti que aqueles mares antigos onde navegávamos, mares de glória, mares de destino, mares onde lutavam jovens deuses e morriam heróis, eram eles mesmos alegorias do desafio da mortalidade.» (pg.129)

Morris nunca é indiferente a esta mitificação do passado, nomeadamente o passado imperial britânico, em cuja existência teve alguma participação, quando foi militar “ao serviço de sua majestade”. Mas é preciso que se diga que nada neste livro é nostálgico de uma suposta época áurea, tanto mais que a autora, partilhando sem medo de mostrar contradições uma complexidade que sempre atravessou a sua escrita, tanto preza os velhos navios britânicos como desanca na família real, tanto elogia a marmelade inglesa como assume com furor a identidade galesa, luta em que também desencanta uma alegoria, desta vez sobre o Reino Unido e a sua relação com alguns territórios, quando conta a história dos cartógrafos que, no início deste século, desenharam um mapa que omite a existência do País de Gales.

Autora de dezenas de livros (e de reportagens e outros artigos para a imprensa), muitos deles registando viagens que fez por todo o mundo, Jan Morris tem nestas Alegorizações uma espécie de herança colectiva e generosamente distribuída a quem a quiser ler. Tudo nestes textos é um brinde que celebra a vida, o prazer e um inteligentíssimo sentido de humor. Não há conselhos, lições de moral ou frases para a posteridade, a não ser, talvez, esta: «(…) posso dizer com egoísmo que, para mim pelo menos, a vida tem sido uma longa fascinação, errante, peculiar e, no geral, bondosa.» Pudéssemos todos fazer semelhante balanço no fim e não havia alegoria que nos fizesse tropeçar.

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