Espelho Meu Andreia Brites 10 Abril 2023

A primeira vez que eu nasci
Vincent Cuvellier
Charles Dutertre
Editorial Presença 
Tradução de Carla Maia de Almeida 

A história de uma vida pode ser contada de muitas formas. O que se elege como mote podem ser encontros, expectativas, emoções, aprendizagens. Nesta prosa poética, o foco está na descoberta de si e do mundo e lá cabe tudo o que funda a identidade da personagem.

O discurso anafórico marca a enunciação e o ritmo cronológico: a cada página dupla, nova experiência e respetiva ilustração. “A primeira vez que…” apresenta a narradora desde o momento do seu nascimento e destaca momentos afetivos na sua relação com os pais: os primeiros sons, as primeiras imagens, os primeiros toques. O momento do primeiro banho, da primeira sopa, dos primeiros passos. Depois, a viagem de autocarro ou a exploração do supermercado. Em todos, a presença do adulto cuidador como interveniente basilar. Não importa se a memória é própria ou relatada, importa que remete para o lugar seguro do ninho e pode servir de rastilho para a narrativa do leitor, criança ou adulto. 

A primeira vez acompanha o crescimento e as descobertas autónomas: a briga que leva à amizade na escola, as máscaras, a evasão pelo sonho na sala de aula, a percepção da mudança na adolescência, a viagem de comboio, o talento musical.

A certa altura, o afeto dirige-se para a descoberta amorosa e no final percebe-se porquê. A enumeração fecha com um ciclo e a sua derivação oferecendo uma possibilidade de transcendência: o nascimento ganha densidade, sentidos e beleza.

A mensagem do texto é muito poderosa pela escolha dos momentos, pelos detalhes sinalizados, pelo encadeamento biográfico. Porém, a sua sensibilidade faz-se acompanhar de um sentido de humor fresco: “A primeira vez que entornei a sopa em cima do Pai, ele ficou verde” ou “A primeira vez que escorreguei numa rocha, ela chorou. Eu, não.” São exemplos que intercalam com outros melancólicos ou tristes e que dotam a protagonista de densidade psicológica. Ainda, o jogo entre literal e figurado, de que a ilustração se apropria, leva o leitor a desenvolver as suas próprias inferências diretas e indiretas e a emitir os seus juízos afetivos. A escolha dos ângulos, os detalhes dos contextos espaciais bem como a caracterização física da protagonista acrescentam elementos à narrativa, situam-na num determinado momento do seu crescimento ou ainda justificam acontecimentos seguintes. Para o leitor adulto acrescem situações clichê, como a do jantar com amigos em casa. O equilíbrio entre as peças essenciais para a felicidade é notável e é muito difícil que o leitor, aqui ou ali, não esboce pelo menos um sorriso terno.

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