Destaque Sara Figueiredo Costa 28 Março 2024
Patti Smith ©Stephan Crasneanscki, ZOOM. DR.

A piscina cósmica de Patti Smith e do Soundwalk Collective

No Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a exposição Evidence: Soundwalk Collective & Patti Smith mergulha nos abismos poéticos de Antonin Artaud, Arthur Rimbaud e René Daumal a partir das suas viagens.

Entre 2019 e 2021, o Soundwalk Collective e Patti Smith criaram The Perfect Vision, um tríptico sonoro composto pelos álbuns The Peyote Dance, Mummer Love e Peradam. Os discos partiam da obra poética de três autores franceses, Antonin Artaud, Arthur Rimbaud e René Daumal, explorando uma força comum a essas obras, a necessidade de mudar de lugar, de procurar além alguma coisa, de alterar o meio envolvente e avançar em direcção ao que não se conhece ou ainda não nos deixou conhecer(mo-nos). Gravados respectivamente na Sierra Tarahumara, no México, no vale da Abissínia, na Etiópia, e no cume dos Himalaias, na Índia, cada disco procura recuperar os passos dos poetas, usando sons recolhidos nas paisagens e em paragens com características muito diversas e criando um mergulho sonoro nas obras e na vida de cada um deles.

A partir desse trabalho, que implicou a deslocação de Stephan Crasneanscki, dos Soundwalk Collective aos três lugares, e que prosseguiu com um diálogo intenso entre este artista e Patti Smith, muito a partir das leituras dos poemas dos três autores, nasceu uma exposição/instalação, que esteve patente no Centre Pompidou, em Paris, em 2022. Essa exposição, com algumas adaptações, está agora no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e visitá-la pode ser uma experiência muito diferente daquela que proporcionam a maioria das exposições em museus artísticos.

No princípio é uma sala escura, com texto nas paredes negras, e um par de auscultadores para cada visitante. A folha de sala, se lida antes, dá algumas pistas, mas está longe de poder descrever a experiência, sobretudo porque a subjectividade – aqui no verdadeiro sentido de experiência do sujeito – é a chave para navegar este espaço.

O texto que se lê nas paredes funciona como uma introdução, repartida em três capítulos, e contextualiza tanto como desafia. O que vamos ver parte de uma reflexão que começa com a obra de três poetas franceses, Antonin Artaud, Arthur Rimbaud e René Daumal, estendendo-se em múltiplas direcções. Há viagens aos lugares vividos ou descritos nos poemas e partilha de pensamentos sobre o que esses lugares fizeram despertar em quem os visitou (Stephan Crasneanscki e a sua equipa) e em quem sobre eles pensou (Patti Smith), viajando de um outro modo. Há sobretudo um diálogo feito de partilhas múltiplas entre os dois artistas, com a partilha do silêncio à cabeça. Aquilo a que chamamos indizível, essa palavra que parece resolver tudo mas que nunca chega para abarcar o tanto que não conseguimos transformar em linguagem, e que ainda assim nos transforma. A dada altura, escreve Stephan Crasneanscki: «É como tentar encontrar um sopro fossilizado numa rocha, o qual estamos a tentar ressuscitar para gravar a sua exalação.» E Patti Smith, mais adiante, acrescenta: «Sim, é como acordar o espaço, que bonito. O espaço existe sempre. No espaço do Daumal, ele criou-o. É isso que os artistas fazem, criam espaço.» Como René Daumal, também Antonin Artaud e Arthur Rimbaud criaram esse espaço, múltiplos espaços, por vezes derrubando paredes. Aqui, estamos já num outro espaço, criado a partir da poesia desses autores, uma outra dimensão, mesmo que as leis da física não o (a)provem.

Sempre de auscultadores, recebendo um áudio que não sabemos o que será, mas suspeitamos que pertença a um dos discos de The Perfect Vision, quem visita a exposição passa então para a segunda sala. Aqui, talvez a imagem de uma cosmogonia seja a descrição possível do espaço e do que ele contém, mas duvidamos sobre a necessidade de encontrar uma palavra, essa ânsia sempre acesa de tudo arrumar na linguagem verbal. Há um mapa disponível, para orientar os visitantes nesse espaço, sobretudo para lhes dar referência das gravações que vão escutando e do que está exposto nas paredes. Particularmente na parede à esquerda, apropriadamente chamada “Evidence Wall”, que apresenta um conjunto heterodoxo de pinturas, desenhos, pedaços de pedra, objectos rituais de diferentes tradições, capas de discos, fotografias. Cada um desses objectos está legendado no mapa que vamos usando para nos guiar, mas rapidamente percebemos que identificar tudo é tarefa difícil, porque a luz na sala é escassa e vai mudando à medida que as paredes recebem projecções de imagens, umas vezes abstractas, outras concretíssimos registos fílmicos.

Não são apenas os objectos da parede que nos convocam: dependendo da posição que assumimos no espaço, os registos sonoros vão-se sucedendo nos auscultadores, e também eles estão legendados no nosso mapa. Sons de cânticos rituais, vento, pássaros, passos, Patti Smith lendo poesia de algum dos três autores franceses, outras vozes, quase tudo recolhido nas viagens ao México, à Abissínia, aos Himalaias, ou nas viagens posteriores, sem deslocação física, que foram os diálogos entre os Soundwalk Collective e Patti Smith para a criação dos discos e deste espaço complexo. Talvez seja nesse momento, quando tentamos registar, apreender, dar conta de tudo o que está a acontecer à nossa volta de um modo, que se torna clara a vacuidade de tal esforço. Abarcar tudo pode ser deixar-se contaminar aleatoriamente e não necessariamente apreender tudo de forma sistematizada, racional. O que vai surgindo nas paredes, no chão, nos ambientes sonoros, pode ser recebido como numa viagem, uma deambulação pelas paisagens que servem de referentes para esta exposição, uma escalada de montanha. De repente, absortos no som, um homem santo caminha ao nosso lado na parede e não há nada de impossível nisso. Ouvimos-lhe os passos, mesmo não sabendo se são os dele, escutamos uma ode ao peyote, essa substância tão antiga e capaz de alterar estados de consciência, a luz vai mudando nas projeções e não conseguirmos ler as legendas do nosso mapa já deixou de ser um problema. À nossa volta, as outras pessoas que visitam a exposição deslocam-se também. Passos curtos, quase sempre, muitos momentos em que é possível sentar e ficar à escuta, deslocações curtas até uma das paredes onde outros objectos repousam: terra, desenhos, pedaços de vidro, fotografias. Imergimos, então, num espaço que é outra dimensão, sem necessidade dos ecrãs mágicos que teremos no bolso e que, aqui, não têm outro remédio se não ficar esquecidos. Não será a experiência de tomar peyote, claro, mas é uma aproximação intensa de um outro estado de consciência, longe do quotidiano e longe dos múltiplos captadores de atenção desperdiçada que povoam as cidades, os transportes, as ruas, a nossa vida. Imergir num espaço outro sem sairmos fisicamente do nosso não se faz num ecrã, mas talvez se faça com as pessoas deambulando juntas numa sala como esta, uma espécie de piscina cósmica, cada uma irremediavelmente sozinha na sua viagem. Como diz Patti Smith na conversa que mantém com Stephan Crasneanscki na parede da primeira sala: «É tudo energia. Estes poetas estão todos mortos, é claro. Vou visitar os túmulos deles e sei que estão mortos, mas a energia deles – as ondas rádio e as ondas cerebrais, todas essas coisas vão para a pool, é isso que ela é: a energia líquida de tudo.»