À mesa da história
Foi com Cinco Séculos à Mesa que Guida Cândido se revelou ao grande público, num livro cheio de belas imagens que oferecia aos leitores um percurso pela história da cozinha portuguesa a partir de uma mão cheia de livros de receitas – do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal a O Livro de Mestre, de João Ribeiro. Antes disso, já a autora desbravava os caminhos da gastronomia, sempre cruzados com os da história, da cultura, da economia e da sociedade.
Investigadora na Universidade de Coimbra, a alimentação e tudo o que com ela se relaciona, das práticas da vida quotidiana às mesas de festa, do cultivo e da recolha aos períodos de carência, tem sido o seu objecto de estudo nos últimos anos. Sobre a Figueira da Foz, onde reside, co-organizou (com Margarida Perrolas) um receituário que reflete as mesas de todas as classes sociais e através do qual se descobrem as artes da pesca, a agricultura, as influências culturais e os hábitos que foram integrando o gosto local (A Nossa Mesa: receituário gastronómico da Figueira da Foz, 2015). Já depois de Cinco Séculos à Mesa, publicado em 2016 e premiado como Livro do Ano pela Portugal Cookbook Fair, Comer Como Uma Rainha (2018) percorria o receituário real entre os séculos XVI e XX, mostrando o que se comia nas reais mesas portuguesas, tendo vencido o prémio de Literatura Gastronómica 2019, atribuído pela Academia Internacional de Gastronomia.
A abordagem da autora não passa pela simples transmissão de receitas culinárias ou pelo ensinar a cozinhar este ou aquele prato. Não é que essa vertente esteja ausente dos seus livros, e quem seguir as receitas terá o seu esforço degustativo recompensado, mas o trabalho de Guida Cândido é o da pesquisa aturada por entre a história e as muitas histórias da gastronomia portuguesa, com atenção às influências transmitidas e recebidas e com um olhar muito particular sobre a importância da memória, os muitos patrimónios familiares associados à comida e a certeza de ser a mesa um lugar de afectos partilhados. A Blimunda conversou com a autora a propósito do seu novo livro, A Vida Secreta da Cozinha Portuguesa (D. Quixote), que mergulha nos arquivos da história gastronómica para encontrar as primeiras versões atestadas de algumas das receitas que compõem o nosso paladar comum. Entre o arroz-doce vindo da mesa dos monges de Tibães e o coelho à caçador registado por João da Matta, há muito para cozinhar e provar. E há, sobretudo, muitas histórias para conhecer e relações nem sempre imediatas que se estabelecem entre o fogão, a mesa e a comunidade que os utiliza.
Depois de percorrer os livros de receitas feitos em Portugal (em Cinco Séculos à Mesa), agora recorre a essa bibliogra!a para encontrar as primeiras versões registadas de certas receitas que definem, de algum modo, uma ideia de «cozinha portuguesa». Como nasceu este livro?
O livro nasceu de forma muita espontânea em conversas informais com muitos profissionais da área da história da alimentação, da gastronomia, da culinária e da restauração. Fui-me apercebendo que os conhecimentos sobre as origens e identidades da dita cozinha tradicional portuguesa eram campo fértil na manutenção de equívocos, dúvidas, incertezas, especulações, mas também muitos fundamentalismos. Em 2018 tinha editado o Comer como uma Rainha, que abarcava um universo muito particular da mesa régia e da cozinha refinada. Tinha em mente um novo projeto, bem distinto desse, mas acabei por ser empurrada para este tema que agora abordo, precisamente porque eu própria fiquei mais desperta para todas essas questões e dúvidas e queria respostas. No Cinco Séculos à Mesa ancorei a pesquisa em cinco tratados fundamentais da culinária, um por cada século. Na presente publicação, precisei de 18 livros de cozinha para contar esta história que, obviamente, carece de continuidade e aprofundamento uma vez que a seleção de 50 receitas é redutora… por economia de espaço, fica, assim, a possibilidade do volume II num futuro próximo.
Ficamos a saber que até ao século XIX, a ideia de uma cozinha portuguesa com características definidoras (e, portanto, capazes de a distinguirem de outras cozinhas) era pouco estável, havendo mesmo quem registasse a nossa maior queda para a imitação do que vinha de fora, nomeadamente de França… Apesar disso, sempre se comeram alguns dos pratos aqui referidos, por vezes desde há muito tempo, mesmo que os registos não os tenham «apanhado» antes. Afinal, parece que não havia noção – sobretudo junto das classes mais abastadas e letradas, as que tinham acesso a refeições elaboradas e com espaço para a inovação e as que podiam registar receitas em livros – dessa «cozinha portuguesa», ainda que ela existisse. É assim?
A questão é sensível e de difícil resposta. No campo da história não podemos fazer afirmações que não sejam baseadas em fontes. Ora, neste particular, e concretamente em termos de receituário, as afirmações válidas que podemos fazer estão obrigatoriamente relacionadas com os livros de cozinha, com as receitas escritas. Assim, embora seja provável e legítimo pensar que as receitas que se preparavam não seriam apenas as que se registaram em livros, não o podemos provar. A democratização do livro é algo historicamente recente. Da época medieval não temos nenhum livro de cozinha. É preciso entrarmos na época moderna para termos conhecimento do que se praticava na cozinha de corte com o mais antigo livro de cozinha português, o designado Livro de Cozinha da Infanta D. Maria (datado do XVI). É de 1680 o primeiro livro impresso em Portugal, e de apenas um século depois o segundo. Um hiato enorme. Esta escassa produção não nos permite inferir sobre a generalidade da cozinha portuguesa.
É um registo que está confinando a um grupo social privilegiado que consome, por regra, o que se consome nas restantes cortes da Europa, à época. Existem, no entanto, outras fontes indiretas que nos permitem conhecer os alimentos que são consumidos pelas populações, como as pragmáticas, a legislação sinodal, e mesmo os textos dramatúrgicos de que é um bom exemplo a Compilação de Gil Vicente, e tantos outros que nos dão conta dos alimentos, mas não nos informam sobre a sua preparação. Todavia, das receitas que selecionei, 1/5 encontram-se em fontes até ao século XVII, umas mais alteradas que outras. Não chegam a 2/5 as codificadas no século XX. As restantes estão nos séculos intermédios. Esta amostragem pode ser reveladora que, de facto, parte desse receituário que temos como tradicional e com que nos identificamos, remontam a tempos bem recuados e já eram uma escolha dos grupos com acesso ao livro e à escrita.
Neste livro distingue-se o momento em que uma determinada receita surge registada num livro de cozinha da eventual primeira vez em que tal receita foi confeccionada – o caso do escabeche, por exemplo, mas também de muitos outros pratos e técnicas. Era frequente estas receitas chegarem aos livros quando há muito faziam parte da tradição culinária? Como é que isso acontecia, ou seja, como é que estes autores, sobretudo os mais antigos, decidiam a inclusão de uma determinada receita que provavelmente já conheciam há muito?
Não tenho como responder a esta questão. Tal como afirma, e é muito importante ressalvar, este estudo indica apenas e tão só o primeiro registo escrito conhecido dum conjunto de receitas. Nada indica que não possam ser consumidas antes, e até de forma muita expressiva. A sua inclusão ou exclusão dos manuscritos e livros não encontra resposta que não seja no campo da especulação. Se atentarmos no que nas nossas casas se passa, podemos supor que em muitas circunstâncias registamos as receitas especiais, dos dias festivos, as que não são usuais na mesa do quotidiano. Não por acaso, em muitos cadernos de cozinha de receitas de família, o que sobressai é a doçaria, associada essencialmente aos dias de festa, como o Natal. Ou, noutras ocasiões, receitas que envolvem questões técnicas mais elaboradas e que, nessa medida, não são praticadas no dia a dia e por isso não se fixam com a mesma facilidade dos pratos comuns.
A ideia de tradição invoca-se muitas vezes associada a uma determinada forma de fazer algo, normalmente aquela que melhor conhecemos, mas a tradição é mais maleável do que o nosso apego leva a crer e a origem daquilo que conhecemos pode estar muito longe do que imaginamos. Concorda?
Sem dúvida. Temos muita dificuldade em recuar mais do que as cozinhas das nossas avós, no limite, das nossas bisavós. São essas memórias que perpetuamos e que julgamos imutáveis. Dificilmente encaramos com facilidade a hipótese de antes ser de outra forma. Essa é a nossa herança gastronómica e somos muito fiéis a essa matriz. O que gera equívocos porque as diferenças regionais são enormes, moldadas elas também pelos aspetos sociais e económicos dos diferentes grupos sociais. Ora esse conjunto de diversidades e particularidades cria a ideia que, tradicional, é o que se faz em nossa casa e quando nos deparamos com outras variações de uma mesma receita, tendemos a questionar a sua veracidade e a rejeitar. Levanta-se a questão do que se entende por cozinha tradicional? Qualquer afirmação convicta de originalidade e pertença de diversos pratos associados ao que se infere por tradicional, deverá ser alvo de interrogação e validação da sua interpretação. No mais, a questão basilar assenta na definição do próprio termo tradicional. A palavra tradição, e tudo o que ela encerra, decorre essencialmente da propagação de um uso, durante um longo ciclo, constituindo um património que insiste em viver na memória coletiva e que se revela em normas sociais atuais, ainda que muitas vezes com um caráter pontual. São práticas culturais, populares, religiosas, familiares e, inevitavelmente, gastronómicas.
Este apego à tradição no que à culinária diz respeito pode ser também um modo de nos apegarmos àquilo a que poderíamos chamar identidade? Até que ponto o que cozinhamos e o modo como comemos têm um papel nesta identidade?
Enraizados no espaço e no tempo, os processos alimentares de um território são reveladores de um estado da sociedade e, consequentemente, das suas mentalidades. Constituem, bem entendido, heranças daqueles que viveram antes de nós e testemunhos de modos alimentares anteriores. Os pratos que se consideram património cultural e gastronómico de um território têm a particularidade de criar vínculos e sentimentos de pertença a um local, a uma comunidade. Resgatam o passado e perpetuam a memória num exercício que visa a continuidade no presente e que se deseja no futuro. As tradições que mantemos, as questões alimentares relacionadas com as festividades e os ciclos da vida são um repositório de saberes, crenças, hábitos e costumes que importa analisar e salvaguardar. Constituem hábitos que perpetuam lembranças e recordam a necessidade de preservar valores e conhecimentos. A transmissão oral ou escrita de usos e costumes culinários com práticas conservadas por ação da memória, adquirem um valor ritual e simbólico.
Todas estas receitas foram experimentas por si? Que dificuldades surgem na sua confecção, pensando que as nossas cozinhas domésticas mudaram muito e que as técnicas e processos podem não estar adaptados ao que temos à disposição?
Excelente questão. Muitas pessoas me colocam essa questão. As receitas que selecionei, no geral, não apresentam dificuldade de confeção para a generalidade das pessoas. As nossas cozinhas evoluíram bastante, mas isso só vem facilitar alguns processos. Claro que tem de se ter em conta essa evolução e adaptar tempos, sobretudo. Quanto aos ingredientes, também não existem muitas excentricidades que não estejam ao nosso alcance. Preparei a maioria das receitas. Tive ajuda de cozinheiros profissionais em algumas não por uma questão de dificuldade, mas por economia de tempo para ter os conteúdos preparados atempadamente e porque me agrada sempre poder envolver outras pessoas neste processo de conceção e concretização de um livro. No caso, além de bons profissionais são, igualmente, bons amigos e pessoas que acreditam na importância da defesa da nossa herança gastronómica, praticando-a nas suas cozinhas.
Esta ideia de juntar uma vertente de pesquisa histórica e cultural com a apresentação das receitas propriamente ditas, criando um livro que não é o simples livro de receitas, mas que também não é um livro encerrado na história gastronómica, mas talvez um híbrido, chamemos-lhe assim, tem sido constante no seu trabalho. Porquê? O que a faz juntar os dois «discursos»?
Recordo-me que quando publicámos o Cinco Séculos à Mesa, durante uma reunião de equipa antes do lançamento, discutia se a questão da localização do livro em loja. A minha editora tinha algumas dúvidas se o deveriam encaminhar para as prateleiras da História ou para a Gastronomia. Como bem diz, são híbridos e esse registo é o que formaliza de alguma forma os domínios que me interessam. Por um lado, existe uma vertente muito clara da minha posição enquanto investigadora e que é uma parte absolutamente imprescindível neste trabalho. Por outro, consigo agregar a essa componente que considero diferenciadora nestas publicações, a vertente prática que é mais imediata na apreensão pelo público. Na generalidade, muitas pessoas cozinham… eu também. A cozinha, a preparação das refeições está presente no meu quotidiano e a ela dedico uma parte significativa do tempo. Aprecio a preparação das refeições, na mesma medida, agrada-me a partilha da mesa com os que me são próximos. No fundo é também a possibilidade de poder trabalhar uma área em que não tenho formação técnica, a culinária e aplicar a sensibilidade e o gosto pela composição, o food styling e a fotografia. Trata-se de uma trilogia camiliana: «Coração, Cabeça e Estômago». Considero que é um casamento feliz. Resgatando de novo um título do nosso Camilo Castelo Branco, espero que sejam pelo menos «Doze Casamentos Felizes»!