A liberdade está na rua
No Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, a exposição Manifestações de Liberdade reúne imagens fotográficas e em vídeo de onze artistas, bem como um conjunto de fotografias do arquivo do Diário de Notícias, e nela se mostram registos captados em Lisboa, nos anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974.
É Luís Pavão quem abre o percurso por estas Manifestações de Liberdade e logo nessa primeira paragem salta à vista a festa nas ruas, o convívio entre militares e civis e a pluralidade de rostos, roupas e gestos. Algumas fotografias são do próprio dia 25 de Abril, mas em lugares de Lisboa menos óbvios do que o Largo do Carmo, o Terreiro do Paço ou a Rua António Maria Cardoso. Um homem descansa encostado a um Volkswagen “carocha”, está quase deitado sobre o capot do carro, os pés apoiados no chão. A cena passa-se no cruzamento de São Sebastião da Pedreira e aquela pose contrasta com outras imagens do dia 25, onde cada pessoa parece ter uma missão, sobretudo os militares. Não sabemos quem é o homem, talvez também cumprisse um qualquer papel, planeado ou espontâneo, nos acontecimentos do dia, mas no momento em que o fotógrafo disparou, o homem descansava. Esse gesto de repouso e algum abandono não deixa de ser simbólico, como se, a partir daquela madrugada, já fosse possível descansar; por outro lado, era seguramente possível ocupar o espaço público do modo que melhor aprouvesse a cada um e cada uma, e também aí se sente o ar de mudança trazido pela revolução.
As fotografias de Luís Pavão prosseguem, captando momentos de manifestações várias nos dias e nos meses que se seguiram ao 25 de Abril: manifestações de operários contra o desemprego, colectivos que exibem faixas onde se lê “Casas sim, barracas não”, metalúrgicos organizados no primeiro 1º de Maio. Esse primeiro dia do trabalhador celebrado em democracia, poucos dias depois da mudança, está presente nas fotografias de outros artistas desta exposição, como António Rafael, António Sampaio Teixeira ou Ana Hatherly, mas esta não é uma mostra que se foque em dias precisos ou momentos que identificamos claramente na cronologia que se segue ao 25 de Abril. Por aqui desfilam imagens de diferentes momentos, algumas coincidindo nos dias, mas não necessariamente nos lugares ou nos ângulos, e a visão de conjunto permite identificar as reivindicações populares que passaram a exprimir-se livremente (habitação, emprego, saúde), mas sobretudo o ambiente festivo, celebratório e algo desordenado que ocupou as ruas.
Naturalmente, há um lado documental nesta exposição. Nas imagens organizadas nas várias paredes e salas do Arquivo Fotográfico Municipal identificam-se momentos, assuntos noticiosos, questões políticas desses anos pós-25 de Abril, das primeiras eleições às ocupações de casa por parte de quem não a tinha, passando por reuniões, encontros e congressos, como o 1ºCongresso de Escritores Portugueses, realizado na Biblioteca Nacional, em Maio de 1975, onde vemos imagens de Maria Velho da Costa, José Gomes Ferreira ou José Saramago, entre tantos e tantas outras. As figuras do panorama cultural de então são, aliás, frequentes em várias destas imagens, onde, para além dos escritores presentes no congresso, reconhecemos pessoas como Maria Lamas, António Pedro Vasconcelos, Luís de Sttau Monteiro ou Fernando Lopes Graça, entre outras. Identificam-se, além disso, partidos políticos, muitos deles entretanto desaparecidos, nos murais, nos cartazes, nas pichagens de paredes um pouco por toda a parte. É, aliás, interessante notar a desordem com que se colavam cartazes e em fotografias de Álvaro Campeão, por exemplo, podemos ver a estátua do Santo António, em Alvalade, com a base coberta desses materiais, ou a fachada do Palácio Foz, nos Restauradores, com os cartazes a delimitarem as várias portas e janelas. Nos registos em filme, para além da vontade de documentar elementos que passaram a integrar a paisagem quotidiana de Lisboa, como os murais de diferentes partidos políticos e movimentos, essa informalidade transformada em festa colectiva ganha contexto, especificando-se um ou outro momento e analisando-se a cronologia de diferentes acontecimentos. Ainda assim, são os momentos mais espontâneos e menos preocupados com o rigor documental que ganham destaque, como no filme do cubano Santiago Álvarez, Milagro en La Tierra Morena, onde uma mulher fala do tempo que o marido passou preso e diz, a dada altura, que também esteve presa, em 1937, mas apenas durante 24 horas, «porque dei uma cabeçada a um agente». A gargalhada que se segue a esta declaração é todo um programa, mostrando o desprezo pela autoridade do Estado Novo, o orgulho por tê-la desafiado, mas sobretudo a ausência de medo. É isso que se celebra em toda a parte, e que estas imagens estáticas ou em movimento registaram com a mesma espontaneidade que atravessava as ruas: a ausência de medo.
Há uma outra vertente importante a atravessar Manifestações de Liberdade: a própria imagem faz parte do processo em curso, da mudança, da sensação festiva, dos dias em que tanta gente saía à rua e tomava a palavra. Os registos fotográficos, e também em filme, integram o momento histórico que registam, envolvem-se nele, contribuindo para o decorrer dos acontecimentos, e isso confere-lhes uma outra expressividade, diferente do simples registo para memória futura. Esse gesto que cruza registo e participação é notório em muitos dos trabalhos expostos, mas talvez o conjunto de fotografias e composições fotográficas feitas por Ana Hatherly seja o exemplo mais eloquente. Nessas imagens, feitas por uma mulher que não era fotógrafa, nem usava a fotografia como forma primordial de expressão e criação, vemos o registo espontâneo, sem grande preocupação com a composição ou os enquadramentos. Vemos, sobretudo, a alegria, a surpresa, a aprendizagem dos gestos de ocupação de um espaço público que a partir de 25 de Abril passou a ser colectivo, democrático, também caótico. A fotografia onde se vê o poeta Mário Cesarinny, a boca desdentada aberta num sorriso que parece conter toda a alegria que se espalha em volta, é uma dessas imagens que dispensa qualquer elemento identificativo que a situe nos dias posteriores ao 25 de Abril; percebe-se, imediatamente, que é a esse período que pertence. Estas imagens são autênticos instantâneos, revelando-se nelas o que se vê, claro, mas também a expressão de quem dispara o botão da máquina. Há uma vontade de deambular, de ver e participar, fazendo dessas duas acções uma só.
O alinhamento de Manifestações de Liberdade inclui imagens de Álvaro Campeão, Ana Hatherly, António Rafael, António Sampaio Teixeira, Carlos Gil, Ezequiel Silva, José Couto Nogueira, José Ernesto de Sousa, José Neves Águas, Luís Pavão e Margaret Martins. A estas, juntam-se uma série de fotografias oriundas do arquivo do Diário de Notícias. O conjunto de imagens e o modo como foram organizadas, entre fotografias e filmes, traz às comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos um olhar menos dependente da vontade de arrumar a cronologia, ou de situar com precisão o que aconteceu e onde (ainda que não falte essa informação rigorosa nas legendas, naturalmente), preferindo oferecer uma visão mais desregrada, que encontra eco nos modos populares de celebrar a mudança e viver a esperança do que a partir de então se poderia construir. São imagens que pertencem à celebração que registaram, que nela se inscrevem como parte integrante, e que levam às paredes do Arquivo Fotográfico Municipal essa festa que ninguém sabia para onde caminhava, mas que colectivamente se vivia de corpo inteiro, nas ruas, nas paredes pintadas, nas reuniões, na vontade de futuro e liberdade.