Destaque Sara Figueiredo Costa 28 Fevereiro 2023
© MUHNAC-Ulisboa

A ilustração que revela o mundo

No Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa, uma exposição regista o trabalho de quem, ao longo de séculos, foi desenhando a natureza e ajudando a revelar o mundo.

Ilustrare – viagens da Ilustração Científica em Portugal tem como objecto de trabalho a ilustração científica portuguesa, assumindo esse corpus de um modo simultaneamente didáctico e artístico. Num percurso onde se destacam vários espécimes das colecções do museu, entre peixes, aves e mamíferos, são os desenhos, originais, impressos ou em suporte digital, que tomam conta das salas e contam esta história de como os traços e as cores foram contribuindo para dar a ver o mundo natural.

Com coordenação de Nuno Farinha, juntando-se, no comissariado, Ana Teresa Bigio, Pedro Salgado e Diana Marques,  Ilustrare – viagens da Ilustração Científica em Portugal apresenta-se como uma mostra didáctica, de divulgação da ciência e dos seus modos de fazer, mas é também uma exposição cujas peças se oferecem ao deleite visual e à apreciação estética, cruzando técnica, observação e deslumbramento pela beleza que podemos encontrar na natureza – que também pode ser dura, desagradável à vista, mas que aqui se exibe em pose merecedora de registo para a posteridade.

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Desenhar a natureza através dos tempos

Assumindo desde a entrada a sua vertente didáctica, esta exposição começa com questões, procurando delimitar o campo da ilustração científica e apresentar-lhe alguns contornos: quem desenha, com que conhecimentos e objectivos, para que público? Como em qualquer área do conhecimento ou da prática, não há respostas encerradas, mas há algumas pistas que se lêem nas paredes: «O principal propósito de uma ilustração científica é comunicar algo, de forma objectiva e clara. Mas antes, a imagem tem de cativar e emocionar as pessoas.» Confirmando a premissa, ali se podem apreciar as ilustrações de um peixe pata-roxa pequeno (de seu nome científico Sclyliorhinus canicula) feitas por Jonathan Couch e publicadas no livro A history of the fishes of the British Islands, em 1887. E, nas imediações, não falta um exemplar desse mesmo peixe, devidamente conservado e trazido da colecção do Aquário Vasco da Gama para esta exposição. O mesmo acontece com outras ilustrações exibidas, que são acompanhadas por exemplares dos animais guardados nas colecções do Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa ou de outras instituições, uma solução expositiva que enriquece o olhar sobre as ilustrações que se mostram, levando um pouco de natureza – ainda que conservada fora do seu meio – para junto das imagens desenhadas.

Nos dois núcleos dedicados à técnica, os visitantes ficam a conhecer técnicas de desenho e coloração, mas também modos de impressão e reprodução das imagens, juntando aqui a evolução da ilustração científica com a história da imprensa, que permitiu reproduzir, tornando cada vez mais acessíveis, estas imagens que eram muitas vezes, e talvez ainda sejam, exóticas para tantas pessoas que viviam longe dos espaços onde estes animais e plantas representados existiam. Nestes núcleos podemos ver com detalhe alguns esboços prévios a ilustrações finais, como acontece com os estudos de John Gould e Henry Constantine Richter para um grupo de aves, feitos a lápis e aguarela. Esses esboços acompanham a imagem final, impressa em litografia, e incluída na obra The Birds of Asia, publicada em Londres, entre 1850 e 1883. Depois da xilogravura e da calcografia, foi com a litografia que as impressões reproduzidas de ilustrações científicas ganharam o detalhe e a paleta cromática que permitiu um registo mais realista dos animais e plantas, antecipando a grande revolução trazida pelo offset, onde as impressões são já muito pormenorizadas, permitindo uma aproximação muito grande entre o original e a reprodução. Quando comparamos essas imagens impressas em offset, já no século XX, com as pinturas rupestres ou os mosaicos romanos (que também integram a exposição) onde se vêem mamíferos ou peixes, percebemos que a necessidade e o impulso de registar o mundo natural são muito antigos na nossa história colectiva, mas também que foi o avanço técnico dessa história que garantiu a possibilidade de esses registos serem cada vez mais próximos do “original”. Esta ligação entre história da ilustração científica e história da imprensa é uma das muitas que atravessa a exposição, confirmando que o avanço na cronologia do mundo nunca se faz só de uma nova técnica, de uma única descoberta, de um olhar até aí desconhecido.

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Expedições e deslumbramentos

Sair de onde se está e do espaço que se conhece e avançar por outros caminhos será impulso antigo na nossa existência comum e terá sido ponto de partida para muitos ilustradores, dedicados a irem um pouco mais longe para descobrirem uma ave que nunca tinham visto ou uma planta para si desconhecida. A partir do século XV, com as viagens expansionistas de reinos apostados em conquistar e colonizar outras partes do mundo, esse impulso ganhou consistência de trabalho científico. Nesta exposição, acompanhamos isso mesmo com foco nas viagens e expedições feitas por cientistas portugueses, mas não exclusivamente, à boleia, importa não esquecer, de navios com propósitos nada científicos. Portanto, no mesmo convés onde se organizavam armas para a conquista e se faziam contas aos lucros de pilhagens de recursos e da escravização de seres humanos, preparavam-se igualmente saídas de campo para registar aquilo que se afirmava ser um novo mundo e era, afinal, o mesmo mundo de sempre, parcialmente desconhecido por quem vivia longe.

Reconhecida a importância desse registo de informações e conhecimento, rapidamente se instituíram expedições exclusivamente dedicadas à ciência, algo que perdurará ao longo de séculos.

Dessas viagens e expedições resultaram inúmeros registos da natureza, espécies até aí nunca vistas noutros lugares do mundo que passaram a integrar livros sobre a fauna e a flora de vastos territórios da América do Sul, de África, da Ásia. Entre os muitos livros, desenhos e gravuras expostos nestes núcleos, são particularmente impressionantes as imagens em que Hans Sloane, médico e naturalista irlandês, regista uma vasta quantidade de plantas da Jamaica e de outras ilhas caribenhas. A sua expedição a estes territórios começou em 1687 e parte do seu trabalho pode ver-se na obra Voyage to the Islands Madera, Barbados, Nieves, S. Cristopher and Jamaica, com a particularidade de aos desenhos de espécies naturais se juntarem registos tão relevantes para a compreensão histórica como os engenhos de moagem de cana de açúcar que Sloane bem documentou, não omitindo a força braçal que lhes garantia o funcionamento.

Brasil, territórios asiáticos com presença portuguesa e territórios africanos colonizados por Portugal merecem núcleos próprios, tal é a extensão dos trabalhos de recolha e de ilustração. Aqui percorremos a obra de Garcia de Orta sobre as plantas medicinais usadas na Ásia, o cruzamento entre ilustração botânica e conhecimentos médicos, mas também históricos e culturais, em torno das plantas, e o impacto que essa aquisição de conhecimentos teve na pesquisa médica, mas também na gastronomia e na própria agricultura. Ao lado de imagens de livros como Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia, de Garcia de Orta, já exemplares de plantas às quais devemos a canela ou o cravinho nas prateleiras das mercearias. E há ilustrações de Alexandre Rodrigues Ferreira feitas por si e pela sua equipa no Brasil, no final do século XVIII, registando animais e plantas, trabalho que acompanhou o da procura de novas jazidas de minério e de outros recursos; de John Gerrard Keulemans, o holandês que andou por Angola e pelo Congo no século XIX; de Wilhelm Karl Peters, enviado a Moçambique pelo Museu de História Natural de Berlim em meados do século XIX.

Monarcas oceanógrafos e a vida no fundo dos mares

A história guardou o rei português Carlos I como alvo do regicídio de 1908, deixando a sua herança como investigador dos mares, extremamente rica e bem documentada, relegada para o rodapé das notas históricas, pelo menos para a grande maioria das pessoas. No entanto, a esse rei devemos o registo ilustrado de muitas espécies marinhas das águas portuguesas, bem como a recolha de espécimes que hoje integram a colecção oceanográfica do Rei Dom Carlos, no Aquário Vasco da Gama, sendo que alguns deles viajaram entre Algés e o Príncipe Real para integrarem esta Ilustrare – viagens da Ilustração Científica em Portugal.

Outro elemento da realeza europeia, o príncipe Albert Grimaldi do Mónaco, assumiu papel de destaque no conhecimento dos oceanos, financiando e integrando diversas campanhas científicas que resultaram na recolha e no registo ilustrado de centenas de espécies, que assim puderam ser conhecidas e estudadas. Nesta exposição, destacam-se várias ilustrações realizadas no âmbito dessas campanhas, entre elas as de P. Dautzenberg, criadas nos Açores e integradas na obra Contribution à la faune Malacologique des illes Açores, publicada no Mónaco em 1889.

No núcleo dedicado às espécies marinhas e ao mergulho científico, sobressai a mudança de paradigma que ocorreu nas últimas décadas do século XIX, altura em que a ideia de que pouco ou nada havia a registar nas zonas mais profundas dos mares foi destronada. Um dos responsáveis por essa mudança foi o naturalista português José Vicente Barboza du Bocage, que, na década de 1860, publicou uma série de estudos dedicados às chamadas criaturas abissais, nomeadamente a esponja Hyalonema lusitanica, recolhida a mais de 1100 metros de profundidade pelos pescadores de Setúbal. Como se lê nas paredes desta exposição, a discussão internacional que decorria entre os investigadores dos oceanos sobre a possibilidade de existirem criauras vivas nas profundides abissais do oceano chegou ao seu fim com o convite de Barboza du Bocage «para mais dragagens ao largo de Setúbal e da Arrábida, o que veio a confirmar e ampliar as descobertas dessas criaturas.»

Novas abordagens ao desenho científico

Desenhar o mundo natural é uma forma de o registar e estudar, e também de o apresentar de um modo cativante, com essa vertente artística que pode fazer-nos apreciar uma imagem sem necessidade de um conhecimento prévio sobre tudo aquilo que representa. Mas há um outro papel a assumir importância cada vez maior nesta tarefa, o de contribuir para a protecção da natureza.

Nos últimos núcleos desta exposição, dedicados aos modos de comunicar ciência através da ilustração e aos ilustradores portugueses contemporâneos e os múltiplos trabalhos e projectos que têm desenvolvido, percebemos a importância da ilustração científica nesta tarefa comum e urgente de preservar os ecossistemas do planeta que habitamos. Com recurso a técnicas de impressão 3D e a partir da ilustração, vários modelos didácticos vêm sendo construídos e possibilitando o estudo e o conhecimento de animais, plantas e habitats (como o das formigas, um dos modelos tridimensionais exibidos) junto de um público escolar e não só. É, assim, possível estudar a complexidade de uma estrutura como a criada pelas formigas sem necessidade de destruir qualquer formigueiro. E o mesmo é válido para conhecer e estudar a anatomia de um rinoceronte ou, com recurso a uma animação digital que acompanha diferentes fases de um desenho, a estrutura das escamas de um peixe.

Logo ao lado, expõem-se trabalhos de ilustradores como Alfredo da Conceição, Ana Bigio, Carolina Ferreira, Catarina França, João Catarino, Mafalda Paiva ou Pedro Salgado, entre vários outros, dando mostra da imensa riqueza que a ilustração científica feita em Portugal continua a produzir. Entre animais e plantas de todos os meios e habitats, este núcleo final confirma todas as ligações históricas, culturais, técnicas e científicas que se vão desenrolando ao longo da exposição.  Ilustrare – viagens da Ilustração Científica em Portugal é muito mais do que uma mostra didáctica e muito mais do que um espaço para o deslumbramento visual a partir da natureza; sendo tudo isso, é também um modo de percebermos, a partir de livros, gravuras, desenhos, espécimes e catálogos vários, que a cultura, a história e o conhecimento do mundo natural são, afinal, parte de uma unidade maior da qual continuamos a fazer parte, mesmo que nunca tenhamos observado um peixe pirarara ao vivo na Amazónia e mesmo que não saibamos (e passemos agora a saber) que tal peixe existia.

A exposição Ilustrare – viagens da Ilustração Científica em Portugal faz-se acompanhar de um catálogo com o mesmo nome, profusamente ilustrado, contendo reproduções de boa parte daquilo que se expõe no Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa e todos os textos explicativos, referenciadores e contextualizadores. É um livro tão imprescindível como esta exposição, com a vantagem de continuar disponível quando a mostra encerrar as portas, em Dezembro deste ano.

→ museus.ulisboa.pt