Espelho Meu Andreia Brites 2 Outubro 2023

A caveira
Jon Klassen
Orfeu Negro
Tradução de Rui Lopes 

Sendo o terror um tipo de ficção de que muitas crianças afirmam gostar, é preciso por vezes desconstruir o que isso significa para elas. Tal como acontece com os contos tradicionais, confrontam-se com os seus próprios medos e encontram na narrativa estratégias para os superar. Se acrescentarmos a este facto o ambiente fantástico que por um lado afasta a história do seu quotidiano e por outro amplia o seu imaginário, o terror parece ter os condimentos necessários para alcançar muito sucesso.

Contudo, muitas das obras que os mais novos identificam como sendo de terror são aventuras cujas personagens ou ambientes se associam a este tipo de narrativas: vampiros, fantasmas, casas abandonadas, florestas, e os inevitáveis ruídos e sombras.

Ora neste caso, o conto popular tirolês que Klassen reconta começa por meter medo. E ainda nem se avizinha nenhuma caveira. É a fuga de Otília pela floresta fora, noite cerrada, os sons que ouve e a queda que dá que provocam medo, um medo empático. Depois, o encontro com a caveira é surpreendentemente feliz. Já mais adiante, as ações que Otília leva a cabo para defender a sua mais recente companheira deixam um rasto de violência que, como já referimos, é muito comum nos contos tradicionais.

O que é interessante neste conto reside por um lado no elemento surpresa que não se prevê facilmente, e por outro na crueza da narração que se limita ao desenrolar dos acontecimentos. Cabe ao leitor ajuizar e questionar, sem garantias de obter sempre resposta. Porém, o que é dito possibilita a visualização dos espaços e da progressão da ação.

Desde o ambiente fantasmagórico à amizade inusitada entre uma rapariga fugitiva e uma caveira, tudo contribui para um pacto de leitura entusiasmante. Também a ilustração colabora com o universo gótico: as variações entre preto, cinza e azul e a combinação com rosas alaranjados permitem reconhecer espaços de luz e espaços sombrios; as perspectivas dos grandes salões do palácio abandonado a contrastarem com as masmorras e as escadas da torre; a expressão de Otília quando mata o esqueleto.

Klassen põe o humor que o leitor lhe conhece ao serviço de uma história que pode ser de terror mas é sobretudo de amizade. O que se destaca, no final feliz, é a solidariedade de Otília que convive naturalmente com a diferença entre si e a caveira e encontra soluções (que o leitor identifica no texto ou na ilustração) para tornar a vida da amiga mais feliz.

No final do livro o autor relata-nos o processo que deu origem a este reconto e revela as principais diferenças entre a sua versão e a original. É nessa comparação que distinguimos o conto tradicional do incipiente conto de terror.

Destinado a leitores infantis, este livro conta com a segurança de um texto equilibrado nos seus cinco capítulos, com os detalhes que permitem ao leitor temer e surpreender-se, com a sugestiva ilustração. E conta com o respeito pelos leitores, pela sua capacidade de sentirem e pensarem o que lhes aprouver, sem tentações explicativas ou morais.

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