
A luz acabou
Aos quinze anos, escrevi uma peça para disciplina extracurricular de teatro, ministrada pela professora de português, Dona Salete. A peça intitulava-se “A Luz Acabou” e tratava do tema do distanciamento entre os elementos de uma mesma família em consequência da influência nociva da televisão. Na altura, a “caixinha mágica” ocupava um lugar de destaque em todas as salas, de todos os lares. O tema central da falta de comunicação era interpretado por uma protagonista adolescente que acreditava que a sua família não convivia por estar constantemente hipnotizada pelo “poder da TV”. O que acabava por ser fonte de alienamento, gerando conflitos intrafamiliares e geracionais.
Infelizmente, não restou nenhum exemplar do meu texto, mas a peça chegou a ser encenada por mim com a colaboração dos colegas que faziam parte da nossa trupe juvenil. A ação iniciava-se quando a luz acabava de repente e o acaso dava a eles a oportunidade de conviver. Sem me lembrar de nenhuma cena em concreto, recordo que a família se divertiu bastante em decorrência do corte providencial da energia que os afastou momentaneamente do vício da televisão. Aproximando os vários membros que riram, contaram anedotas e fizeram jogos. No final, eles decidem, dali em diante, desligar a luz algumas horas por semana para poderem conviver.
Foi mais ou menos o que observei aqui no meu mundinho em decorrência do apagão que vivemos em toda a Península Ibérica e em partes de França. Ficamos sem energia e sem comunicações desde o meio da manhã até depois das onze da noite. Em face do contexto atual, como é óbvio, a situação foi muito mais preocupante do que um simples corte de luz. Não dispúnhamos e, na verdade, ainda não dispomos dos esclarecimentos sobre as causas do sucedido. Tudo é possível, desde uma sobrecarga nas redes francesas que depois impactaram Espanha e Portugal ou até, como afirmam os conspiracionistas de serviço, um ataque cibernético.
É certo também que, perante o contexto político internacional dos nossos dias, houve quem entrasse em pânico. Algumas pessoas, com medo do desabastecimento, como no início da pandemia, correram para os postos de gasolina e supermercados para, mais uma vez, comprar água e todo papel higiénico que pudessem carregar. No meu caso, tentei resolver o que pude o mais rápido possível e regressei para casa. No caminho, porque não tinha mais dinheiro em espécie, comprei duas latas de atum no indiano da esquina para garantir o jantar e foi tudo.
Mais do que estar incomunicável, no ontem, o que me incomodou era não ter informação. Então, um pouco antes de cada hora certa, saia e ia até ao carro para ouvir as notícias no rádio e tentar compreender quanto tempo ainda estaríamos naquele prolongado silêncio.
Da minha casa até ao meu automóvel, distavam alguns míseros cem metros e a cada ida, para além das várias janelas abertas com pessoas nelas, eu reparava nos gestos. Vi um casal, ele com pernas penduradas na grade para o lado de fora da sua minúscula varanda e ela recostada na cadeira, sentadinhos lado a lado, e imaginem só, eles liam.
Um pouco mais tarde, outro casal mais corajoso. Ambos com um look punk-rock composto por t-shirts pretas, ele de cabelinho arrepiado, ela de franja cortada à machadada, ouviam um radinho de pilhas que dava uma música abafada. Ela sentada no degrau do prédio, ele numa cadeira de praia na calçada, conversavam felizes e bebiam uma litrosa (ou como é conhecida no Brasil, cerveja de litrão). E era essa a dita parte da coragem a que me referia. Ontem as temperaturas estiveram altíssima e, sem refrigeração, de certeza aquela cerveja estava terrivelmente quente. Valentes!
Vi ainda três meninos, entre o 9 e 12 anos, jogando bola na esquina. Depois, quando voltava para casa, vi os mesmos meninos, da janela do terceiro andar, atirando alguma coisa, que não soube identificar o que era, talvez pedrinhas, mas tentavam acertar os contentores de lixo de recolha seletiva. Eles arremessavam e se escondiam correndo para atrás das cortinas. Ou seja, faziam porcaria como os meninos das idades deles deveriam fazer se estivessem livres da influência perniciosa e diária das telas.
Sem contar os vizinhos das traseiras que estavam nas janelas e varandas conversando uns com os outros sobre o que fariam quando a luz regressasse. Um dizia que faria uma máquina de roupa, outra contava que já preparara uma salada de atum com feijão-fradinho para o jantar (pelos vistos o menu foi rei aqui na região), outra gritava com os filhos—essa grita sempre—para não desperdiçarem água e manterem o balde cheio por precaução enquanto fumava à janela e ria-se. Havia uma certa aura de partilha e comunhão entre todos.
Antes não era melhor do que hoje. A minha intenção não é revivalista. Longe de mim, por favor. Mas me chamou atenção o quão despreparados estávamos para vivenciar uma experiência como aquela, mas o quão preparados estamos para exercer a nossa humanidade sempre que nos é dada a mínima oportunidade.
Quem sabe, como lá na década de oitenta do século passado, de quando em quando, talvez não devêssemos desligar a luz por umas horas para nos lembramos do que somos feitos.
***