Destaque Pilar del Río 16 Abril 2025

Duas solidões: o encontro entre Vargas Llosa e García Márquez

Em 2022, a editora Record publicou no Brasil o livro Duas solidões, um diálogo entre Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa fruto de um encontro dos romancistas no Peru, em 1967. No mês em que o Prémio Nobel peruano nos deixou, aos 89 anos, e quando passam 10 anos sobre a morte do Prémio Nobel colombiano, a Blimunda publica o texto que a jornalista e tradutora Pilar del Río, presidenta da Fundação José Saramago, escreveu para a edição brasileira do livro.

São três da madrugada, o outono entrou com vento forte que arrasta folhas secas e faz que batam as janelas da parte de cima da casa, sempre abertas durante o verão. A noite é escura, tanto que os gatos habituais não se deixam ver, parece que abandonaram seu lugar na praça e no povoado. Não há vida fora nem dentro da casa, ninguém ronca, não se ouvem respirações pesadas e nenhuma criança chora, tudo entrou em outra dimensão e agora o silêncio ameaçador virá também por ti, te engolirá sem piedade porque chegaste à última página de um livro que arrasta os leitores e os leva para o fim do mundo, não haverá uma segunda oportunidade para quem enfrentou Cem anos de solidão, Macondo se instalou no teu interior e com Macondo irás peregrinar incertamente por um infinito ao que ainda não deram um nome porque tudo é novo e exigente. Agora, no tremor dessa estranha madrugada, só te resta odiar Gabriel García Márquez, autor do livro que tens nas mãos, ou talvez amá-lo, não consegue pensar nele indiferente às tuas aflições, muito menos em diálogo amável com Vargas Llosa no Peru, como se a sua escrita não tivesse convocado todas as solidões e a tua desolação pessoal. Nunca estive tão sozinha na vida como na noite em que acabei de ler Cem anos de solidão, talvez por isso nunca mais quis abrir esse livro, embora vem sempre me acompanhando, e às vezes o ouço falar.

Passou o tempo, e as circunstâncias mudaram. A jovem que lia às escondidas livros de autores latino-americanos que chegavam à Espanha da ditadura de Franco por circuitos clandestinos se fez jornalista, e pouco depois, sem que uma coisa tivesse a ver com a outra, Franco morreu, o jornalismo começou a manifestar pulso vital e a cultura vestiu com cores várias gerações que liam autores latino-americanos com paixão compartilhada e discutida, tu de Cortázar, eu de García Márquez, ou de Vargas Llosa, me empresta A casa verde, tenho Ninguêm escreve ao coronel, aí estão O Aleph de Borges, e O século das luzes de Alejo Carpentier, e O obsceno pássaro da noite de Donoso, e Fuentes com A região mais transparente, e Octavio Paz, santa mãe!, descobrimos que o nosso mundo era ancho, forte, indômito, cruel e maravilhoso graças ao continente do outro lado do oceano. Não havia um eles e um nós, se aproximavam de nós escritores que nos ensinavam a sonhar e a ser maiores que a dimensão da ditadura e suas estúpidas normas de racionalidade dogmática e sem alma. De repente surgiu o “boom de leitores”, embora não fosse chamado assim, falava-se do “boom latino-americano”, ao qual puseram um nome afortunado, “realismo mágico”, que porém não explicava totalmente o fenômeno daquela madrugada em que a vida se deteve, nada cresceu nem emitiu som, a não ser o vento que pela última vez varria a terra do povoado da minha mãe, aquela noite em que, por virtude da literatura, cheguei a ver o fim do mundo e senti o estremecimento derradeiro, esse que teremos quando, com Aureliano Buendía, desaparecermos sem remédio.

García Márquez e Vargas Llosa conversavam no Peru em 1967 alheios às convulsões interiores que provocavam com seus livros infinitos, e hoje, lendo o magnífico diálogo que produziram, outra vez dá vontade de sacudi-los pelos ombros, se isso fosse possível, ou sacudirmos a nós mesmos e despertarmos de certas letargias que por algum tempo nos fizeram indiferentes ao milagre daquele tempo inaugural. É esta, querido leitor, querida leitora, uma conversa em que a inteligência da juventude e a consistência de suas reflexões dos primeiros dias da criação se expressam de forma rotunda, deixando claro que os dois seres humanos que nos quebraram com sua capacidade criativa e com o estilo literário fogoso e extraordinário tinham poder para fazer isso. É verdade que eles se perguntam para que serve um escritor, mas não esperaram pela nossa resposta, talvez por isso agora devamos oferecê-la, agradecendo que se mantiveram fiéis à “vocação excludente” que significa tornar ofício a literatura, atitude e forma de vida. No Peru, os dois escritores também dialogaram sobre a solidão, a dos seres humanos que somos e a dos cem anos do livro de García Márquez, solidão que, sendo algo comum à natureza humana, no caso dos romancistas do boom bem que podia ser o resultado de certa alienação continental, a consequência de enfrentar fatos históricos e relações sociais, culturais e econômicas a partir da ficção, ignorando o ponto de vista folclórico, misturando o real e o fantástico porque, como repetem várias vezes, trata-se de que “a fantástica realidade da América Latina faça parte dos nossos livros”.

Conseguiram.

Duas solidões, esta conversa inteligente e amável, bem que poderia ser um passeio pela nossa memória de leitores e a confirmação de que soubemos ler quando o mundo era criança. Também deixará claro que, se nos deixamos arrasar por certos livros, é porque nossa liberdade às vezes demanda a experiência fabulosa do transbordar de emoções. Anos mais tarde, quando Vargas Llosa publicou A festa do bode, a mulher já madura que agora escreve essas linhas tornou a ter outra sacudida emocional e durante algum tempo ela via tudo que acontecia no mundo e que o jornalismo contava a partir da perspectiva desse livro, com a carga de corrupção moral e material que esse livro descreve. Vargas Llosa se impôs na minha experiência leitora uma vez mais, com a mesma força de antanho, a de Conversas no Catedral ou de outros livros que fui lendo devotamente, fruindo e incorporando à minha personalidade. Com a mesma devoção, sempre li García Márquez, deus feroz quando então me fez tremer, amigo depois, confidente de tardes mexicanas, intermináveis, sem sombra de dúvida, brilhantes. Houve um dia em que uma leitora reconheceu García Márquez enquanto, cada um em seu automóvel, esperávamos que o sinal abrisse. Então ela, emocionada, espetou-o com um “mas se o senhor não existe!” que comoveu todo mundo. Sim, existem, falo de Gabriel García Márquez e de Mario Vargas Llosa, nosso patrimônio, a melhor maneira de ver e sentir o mundo. Duas solidões para saber que não estamos sozinhos e que as madrugadas de desolações têm, pela magia da literatura, o final feliz da experiência. E do amor fecundo.

* A tradução do texto é de Eric Nepomuceno