Viver no continuum espaço-tempo
Aqui
Richard McGuire
Cavalo de Ferro
Tradução de Raul Henriques
Com origem numa história curta, de seis páginas, publicada na revista Raw em 1989, Aqui, de Richard McGuire, passou por outras etapas até ser este livro que agora se publica em português.
Afastando-se de uma narrativa mais convencional, McGuire socorre-se de uma estrutura que tem na dupla prancha o seu elemento organizador. É nessas fronteiras que se arruma a sala de uma casa, com a sua lareira, e é a partir desse elemento que vários fios vão sendo puxados, sempre com recurso a indicação de uma data, o que permite que a leitura se oriente, de algum modo, na complexa viagem que este livro propõe. Vamos vendo essa sala em diferentes momentos, começando em 2014, depois recuando (e por vezes avançando) alguns anos, algumas décadas, alguns séculos, até que a sala é substituída pela primeira vez pelo espaço onde a casa agora existe, mas onde centenas de anos atrás não existia. A partir daqui, avanços e recuos temporais prosseguem, acrescentando-se-lhes várias sobreposições. A temporalidade não faz a narrativa obedecer a uma estrutura cronológica, uma vez que os diferentes tempos representados pelas datas que vão surgindo não só deambulam freneticamente pela cronologia como se sobrepõem, algo que aconteceu aqui no passado surge na mesma prancha que um acontecimento futuro, ou vários momentos de diferentes anos e diferentes séculos convivem numa mesma unidade narrativa, a da prancha ou a da dupla prancha.
Esta manipulação da cronologia e da sua relação íntima com um espaço físico delimitado não é mera pirotecnia narrativa, naturalmente. À medida que as páginas avançam, começa a traçar-se aquilo a que poderíamos chamar um exercício de aproximação à complexidade da percepção humana no que ao espaço, ao tempo e também à memória diz respeito. A sobreposição destas duas categorias, espaço e tempo, convocará alguns dos debates que têm mantido ocupada a física quântica e as disciplinas que com ela mais directamente se relacionam, mas convoca sobretudo uma consciência sobre continuidades e interrupções naquilo que sabemos ser a vida humana, limitada na sua duração e ainda assim extensível de modos não biológicos. Nas duplas pranchas de McGuire, sucedem-se pessoas, famílias que vão habitando a casa e vivendo o espaço da sala, por vezes renovando-o, alterando móveis e decoração. Sucedem-se igualmente gestos, alguns repetidos em cronologias muito afastadas e sem que haja ligações familiares, como as mães que brincam e cuida dos seus filhos, outras mostrando hábitos de uma mesma família, como aquelas fotografias de grupo que se sucedem na década de 60 do século XX, sempre em anos sucessivos, registando o envelhecimento de cada um dos retratados.
Em estreita relação com as variações do traço, o uso da cor é outro elemento que contribui para a progressão narrativa, mesmo que esta nunca seja linear, nem obedeça aos parâmetros mais clássicos de um avanço na direcção de uma conclusão. Para além de sobrepor um traço mais próximo de algum realismo (nas personagens que vão desfilando e nas cenas em que a sala não é o cenário central) aos traços minimalistas do espaço e das volumetrias da sala, McGuire vai alternando a paleta dominante em diferentes cenas e tempos, para além de introduzir na (e pela) cor a luminosidade que permite esta demarcação de momentos, sobretudo quando a narrativa já está bem avançada em número de páginas e as sobreposições espácio-temporais são já muitas. De tal modo que, ali pelo meio do livro, quando a narrativa se afunila até apontar o foco para os diferentes conflitos que já atravessaram – e continuam a atravessar – o espaço central da história, há uma dupla prancha onde pequenas vinhetas sobrepostas parecem fazer explodir inúmeros conflitos a que acedemos nesses fragmentos, todos com origem em diferentes cronologias. Se dúvidas houvesse quanto ao novelo permanente de épocas que permanentemente convergem no nosso presente, seja ele quando for, esta prancha afastá-las-ia, bem como a prancha seguinte, em que a imagem de uma família em 1989, assistindo com horror à queda desamparada de um dos seus elementos, é “interpelada” por uma vinheta sobreposta em que, de 1960, uma mulher pergunta a um interlocutor, que só adiante saberemos quem é, se perdeu alguma coisa.
Aqui não é exactamente um livro experimental, no sentido de se construir a partir de elementos ou modos nunca antes praticados em banda desenhada, mas é um livro extraordinário no que ao desafiar das categorias narrativas diz respeito. Ao ter como epicentro um espaço que se mantém o mesmo ao longo de todas as pranchas, modificando-se profundamente mesmo quando lhe reconhecemos a constância de certos elementos, estilhaça a imobilidade do cenário, elevando-o a um patamar onde se distinguem características que facilmente aproximamos das biológicas. Por outro lado, ao assumir referências temporais específicas para logo as mostrar em permanente convívio ao longo de toda a narrativa (de momentos fixados há 3 mil milhões de anos a outros que avançam mais de vinte mil anos em direcção a um futuro difícil de imaginar), distende a noção de tempo, convocando também a memória para esse jogo do que é apreensível e do que nos escapa sem remédio, do que guardamos com a ilusão de nunca se perder ao que queremos abandonar rapidamente, sem saber quão durável pode ser a sua recordação.
Uma nota final para a contra-capa, onde se lê que este livro «revolucionou a novela gráfica enquanto género literário». Supõe-se que novela gráfica é a tradução literal de graphic novel, esse termo sobre o qual já se escreveu material suficiente para compreender a vertente comercial da sua cunhagem. A banda desenhada permanece abalada por este mal: ou é considerada coisa menor, “para as crianças” (classificação que também tem que se lhe diga), bonecada sem espessura nem outro objectivo que não o entretenimento, ou é-lhe atribuído um outro nome, mais pomposo e intelectualmente elevado, para que leitores ditos sérios não tenham calafrios no momento de entrar na livraria. Se comprassem, por acidente, um livro cuja linguagem e meio de expressão é exactamente o mesmo que o utilizado em séries como, digamos, a Turma da Mónica, podiam ver os seus pergaminhos proustianos a arder em combustão espontânea e, já se sabe, incêndios em livrarias não são coisa que se deseje. Esta da novela gráfica, para além de má tradução do inglês, serve precisamente para isso, pelo menos desde os anos 60 e 70 do século passado, quando livreiros inteligentes perceberam que, se dessem outro nome a livros de banda desenhada cuja matéria, modo e temáticas eram tão “elevadas” como um romance de, digamos, Faulkner os tais leitores ditos sérios poderiam aproximar-se deles sem abalos intelectuais. Quanto ao género literário, aí, não há desculpa. A banda desenhada é uma linguagem, como o cinema, a literatura, a música. Nela cabem inúmeros géneros, como acontece com todas essas expressões e linguagens. Chamar-lhe género literário, para além de fazer o velho Aristóteles rebolar na sua tumba, não tem qualquer justificação. Nada disto belisca a grandeza de Aqui, naturalmente, mas seria tão bom que grandes livros de banda desenhada – como este – pudessem ser disponibilizados ao público sem embrulhos, ainda por cima pouco sólidos.