Destaque Sara Figueiredo Costa 27 Dezembro 2024
foto © Nuno Saraiva

Crónica de um espectáculo em forma de jornal

Podíamos inverter a ordem das palavras, dizendo que este texto será a crónica de um jornal em forma de espectáculo, mas foi o palco a dominar a tarde do passado dia 14 de Dezembro, pelo que o espectáculo tomará a dianteira, sem prejuízo da vertente jornalística. O palco foi o da Sala Bernardo Sassetti do Teatro S. Luiz, em Lisboa, e o jornal na origem de tudo é a Mensagem de Lisboa, periódico lisboeta em suporte digital que diariamente nos traz notícias, reportagens, entrevistas e sobretudo muitas histórias de Lisboa e de quem nela vive.

A ideia de Mensagem ao Vivo é um daqueles ovos de Colombo, tudo a parecer tão simples que ninguém percebe como nunca se fez antes (pelo menos, por cá). E a ideia é esta: reunir um conjunto de histórias, de entre as muitas que vão sendo publicadas no jornal, e levá-las ao palco de um teatro. Como intérpretes, os próprios protagonistas, porque é a eles e a elas que cabe tomar a palavra e contar a sua história. Catarina Carvalho, directora da Mensagem, e Ana da Cunha, jornalista da casa, foram as cicerones que apresentaram as seis histórias desta primeira edição ao vivo, todas nascidas de peças publicadas no jornal. 

Ilustração Nuno Saraiva

1.

A abrir, o rap freestyle de GDM, o artista descoberto pelo jornalista Álvaro Filho nos comboios da linha de Cascais. Com um microfone na mão e uma batida a sair das colunas de som, GDM estava em casa, mesmo que longe das carruagens suburbanas que lhe servem de palco. Sempre a rimar, contou como chegou de Goiás, no Brasil, até Lisboa, e como persistiu no seu sonho de fazer música e ter um público, tentando a sorte junto dos passageiros desses comboios que adoptou como palco. 

De seu nome Wellington Cintra, quem já o escutou entre o pouca-terra dos carris conhece-o pelo nome artístico, sigla de “Gangster do Mato”, mas também há quem lhe chame MC do Comboio. Deambulando entre a plateia do S. Luiz sem nunca perder a batida, a rima e improviso, GDM acabou em cima do palco, cantando um tema que talvez venha a ver a luz nalgum trabalho futuro, um daqueles que dê para escutar noutros sítios para além do comboio.

2.

Seguiu-se Eupremio Scarpa, o italiano que há duas décadas anos trocou Milão por Lisboa, depois de umas quantas idas e vindas por outras partes do mundo, e que agora preside à Associação Recreativa e Desportiva O Relâmpago, o mais novo bastião lisboeta do desporto popular. De cachecol da ADRRelâmpago ao pescoço, Eupremio partilhou a sua história na primeira pessoa. Falou do bairro onde cresceu, em Milão, da consciência das diferenças sociais e de classe, da pobreza e das poucas ou nenhumas oportunidades que traz consigo. Falou também do momento em que percebeu que queria ser educador, não professor, mas educador, e de como isso lhe definou os muitos passos que se seguiram na sua vida. 

Depois de uma temporada no Brasil, foi em Milão que Eupremio recebeu o convite para vir até Lisboa. E a confirmar que as fronteiras são coisa artificial, foi um professor brasileiro de capoeira, um dos docentes do Chapitô, que o desafiou a ir ocupar uma vaga para trabalhar num dos vários bairros sociais da capital portuguesa. O bairro era em Chelas e, desde então, o milanês já trabalhou e conheceu vários outros espaços, da Curraleira à Alta de Lisboa. Pelo caminho, foi conhecendo associações desportivas e recreativas e clubes de bairro e foi assim que, juntando a paixão pelo futebol e pelo desporto popular à consciência de que a história de uma cidade e dos seus bairros também se conhece pelos clubes que foi tendo, ajudou a fundar o Relâmpago. Antes de sair do palco, ainda convidou duas pequenas ginastas para uma exibição de saltos, pinos e cambalhotas, acabando por apresentar ao público as mães dessas ginastas, duas lisboetas com origens distantes, na Gâmbia e na Serra Leoa. 

3.

João Paulo Almeida varre e recolhe o lixo das ruas da Graça e de S. Vicente. De vassoura e pá a postos, entrou a varrer o chão e acabou por contar ao público como o seu trabalho quotidiano foi inspiração para outros voos. Com a farda de serviço e os instrumentos do seu ofício sempre por perto, percorreu os anos da juventude, a ida para a escola de teatro e os primeiros trabalhos que teve para se sustentar. Chegou a entrar na Escola de Cinema, mas acabou por trocar as câmera pela vassoura de varredor com que ganha a vida. 

Trabalhando na higiene urbana, não desistiu de fazer outras coisas, de se expressar de outros modos, e foi assim que inventou Vicente, a personagem que já conhecemos de alguns livros para crianças e que tem como grande motor ajudar os mais novos a perceberem a importância da recolha do lixo, da reciclagem, da reutilização. No fundo, é um modo de alertar para este desperdício tão excessivo que nos rodeia, estimulando, de caminho, a criatividade para encontrar outros modos de viver o dia a dia, menos abusivos em relação ao ambiente. Quem passar pelas ruas da Graça ou de S. Vicente, em Lisboa, é capaz de se cruzar com João Paulo Almeida. Se assim acontecer, e como o próprio sugeriu quase a fechar a sua participação nesta Mensagem ao Vivo, é aproveitar o momento para trocar dois dedos de conversa. Pode ser sobre Vicente e os livros em cujas páginas habita, mas também pode ser sobre qualquer outro tema, que João Paulo Almeida é um conversador nato.

4.

«Quem te colhe no sol?/ Perguntas./ Quem te limpa a chaminé/ no scroll/ das redes secas em sinais/ De fumo?/ Se ao menos soubesses não ser de ninguém.» Os versos são de um dos poemas de Alice Neto de Sousa («Sunscreen»), poeta portuguesa com origens angolanas e, como boa parte dos seus poemas, o eco das palavras não se fica pela página impressa, vivendo sobretudo na concretização da fala. A autora diz a poesia que escreve em diferentes palcos, sendo um deles o da RTP África, onde tem uma rubrica regular. No S. Luiz, não foi diferente e quem lá esteve pôde escutar uns quantos poemas ditos de viva voz, ganhando o privilégio de experimentar a poesia nesse seu meio original, aquele que cruza ritmo, melodia, intenção. 

Alice Neto de Sousa escreve sobre muitas coisas, as que a rodeiam, as que a incomodam, as que lhe despertam curiosidade, vontade de partilha, perguntas. Alguns dos seus poemas são escritos para as prostitutas que trabalham na área do metro do Martim Moniz, em Lisboa, pessoas quase sempre invisibilizadas, postas à margem do que queremos ver, e cuja dignidade se reclama de muitas formas, entre elas a poesia. Foi, aliás, com um poema dedicado a estas mulheres que a autora se estreou numa rubrica da Mensagem, em Março de 2022, num exercício que nos desafia o olhar, mas sobretudo a disponibilidade para ver, conhecer, entender. E foi esse exercício de comunhão com quem nos rodeia que atravessou o palco do S. Luiz, a presença firme, a voz bem colocada, os versos a convocarem-nos para esse gesto essencial de ter o corpo presente e a mente disposta à inquietação.

5.

A pandemia faz nascer crianças, originou divórcios, inventou projectos, associações, negócios. Um deles foi o de João Gama, que subiu ao palco envergando uns óculos que bem podiam ser vistos no nariz de algum galerista novaiorquino, ou de alguma actriz actuando num filme de Wes Anderson, para uma conversa com Ana da Cunha, assim em modo de pequena entrevista ao vivo e a cores.

Às perguntas de Ana da Cunha, João Gama foi respondendo e essa dança que cada conversa pode ser deu ao público o acesso que se pretendia ao percurso deste entusiasta do skate que agora cria óculos. Antes da pandemia e do confinamento, houve a Suíça, onde João Gama viveu, e o material de que era feita a casa onde vivia nesse país – a sua e várias outras, dos exteriores aos interiores. A madeira despertou laivos de paixão e terá começado a fazer germinar qualquer coisa que haveria de ganhar forma mais tarde. Primeiro, apareceram uns laços que fizeram sucesso em vários casamentos e baptizados; depois, vieram os óculos cujas armações reutilizavam madeira de pranchas de skate já inutilizadas. Agora sim, já em plena pandemia, João Gama preparou um atelier e teve o tempo necessário para criar uma linha de óculos que foi aceitando encomendas particulares e que, mais tarde, encontraria um parceiro na Optocentro, a empresa de óptica que passou a comercializar estes óculos únicos.

6.

A fechar esta primeira edição da Mensagem ao vivo, o grupo de teatro Àpriori partilhou a sua história da maneira que melhor sabe contar histórias: com teatro musical. Fundado há cinco anos, este projecto nasceu da vontade e do entusiasmo de três amigos, que rapidamente passaram a cinco, e que pouco depois seriam um grupo com várias dezenas de elementos. No início, eram João Prior, Inês Lima e Marta Martins, partilhando sonhos numa garagem de Sacavém, como conta Ana da Cunha na Mensagem de 18 de Novembro de 2022. Queriam fazer um musical sobre Marilyn Monroe e rumaram, de Sacavém até Carnide, deixando uma carta debaixo da porta do Teatro Armando Cortez. Podendo parecer improvável, a carta foi lida e a resposta foi rápida e positiva: o teatro abriu-lhes as portas para esse primeiro musical, Marilyn, O Musical, estreado em 2019, permitindo o arranque de um projecto que não foi sonho de um só episódio.

Hoje, os Àpriori têm sede na Cooperativa A Sacavenense e contam já com alguns espectáculos no currículo. Antes de cada espectáculo chegar ao palco, há ensaios, decisões, soluções para encontrar, e há formação, uns ensinando os outros, todos trabalhando para que cada encenação seja única, profissional, inesquecível. No palco do S, Luiz, cheio de actores-bailarinos-cantores, partilharam um pouco do seu percurso da maneira que melhor o sabem fazer, cantando e dançando. 

7. (A história paralela)

Com os olhos do público postos no palco, quase passava despercebida a presença de uma pessoa instalada numa secretária, num dos vãos de janela do Jardim de Inverno. Era Nuno Saraiva, o ilustrador que é presença habitual na Mensagem, desenhando ao mesmo tempo que o palco ia recebendo os seus protagonistas. Quem lá esteve, pode descarregar a ilustração final do autor a partir da folha de sala. Quem não esteve, talvez possa organizar-se e pedir à Mensagem que, no fim, publique as ilustrações de todas as sessões (quiçá em papel, numa bela plaquete que podíamos comprar previamente, para ajudar os custos, porque não?). Agora, é marcar na agenda as próximas datas da Mensagem ao Vivo: 25 de Janeiro, 1 de Março, 12 de Abril, 31 de Maio e 5 de Julho.