Crítica Sara Figueiredo Costa 18 Dezembro 2024

Presente contínuo

Bambino a Roma
Chico Buarque
Companhia das Letras

Memória ficcionada, como todas as memórias, Bambino a Roma regressa aos anos do fim da infância de Chico Buarque e à cidade que serviu de refúgio, a si e à sua família, nessa saída de um Brasil pouco recomendável para quem apreciava respirar alguma liberdade. 

É a travessia por mar, entre o Rio de Janeiro e Génova, que abre esta prosa, um registo plenamente romanesco onde o pacto ficcional nos leva a aceitar parte do que lemos como autobiográfico. Narrado pelo adulto que agora rememora os anos romanos, o livro está cheio dessas pequenas memórias que dão estrutura a uma vida: as amizades de infância e as sensações de injustiça, a descoberta atrapalhada da sexualidade e os amores, os projectos para um futuro que se imaginava infinitamente distante, os pequenos acidentes. De um certo modo, Bambino a Roma cartografa esses momentos com a mesma intenção de rigor com que vai cartografando as ruas, praças e becos de uma Roma que tem a sua patine de passado, mas que tem sobretudo a marca dos lugares que só ganham forma plena na memória e na escrita. Essa consciência de que é a memória, lugar de armadilhas e incertezas, que nos constrói atravessa todo o livro, manipulada por um narrador que quer lembrar, mas que também quer – e assim o assume – criar o que lembra, sabendo que não há registos imaculados, como conta a propósito do projecto infantil de escrever um diário: «(…) eu não conseguiria descrever honestamente o que se passava à minha volta no dia a dia, pois mesmo as memórias mais recentes seriam retocadas à medida que eram escritas. Achei melhor largar mão da ideia de um diário e deixar que o esquecimento fizesse o seu trabalho. No futuro a imaginação cobriria as lacunas da memória e os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido.»  (pg.88)

À chegada a Roma, depois do mar, do enjoo permanente e da viagem de comboio, Chico transforma-se aos poucos no brasiliano, como lhe chama o seu amigo Amadeo, com quem partilha o amor pelo futebol (e com quem há-de aprender novas palavras em italiano, nem todas particularmente recomendáveis). Escola Americana, longos passeios à descoberta da cidade, colegas de um outro estrato social, as pessoas que vai conhecendo nos seus percursos e uma permanente sensação de estranheza. De algum modo, é uma vida dupla que Chico parece valorizar, poucas vezes deixando que os dois mundos se contaminem e nunca desafiando as fronteiras – mesmo quando conhece a mãe de um colega, uma famosa actriz italiana com quem dançará numa festa (antes de alimentar fantasias várias com a memória desse momento).

As características da prosa do autor confirmam-se nesta memória ficcionada, do ritmo bem medido ao pequeno apontamento de humor, da atenção aos minúsculos gestos que definem um estado emocional ao coloquialismo que nunca amachuca o cuidado trabalho de linguagem. Ainda assim, este é um texto com particularidades que o distinguem dos romances do autor, não só porque a matéria é assumidamente autobiográfica, mas sobretudo porque a assunção desse facto é um dos motores da narrativa. Já muito perto do fim do livro, lê-se: «Caminho debaixo de chuva pela Via del Corso e entro para tomar uma grapa num café onde me lembro de ter bebido com refugiados brasileiros no tempo da ditadura. Deve passar de oito da noite, três da tarde no rio, e se estivesse por lá a essa hora eu daria um mergulho em Ipanema. Ou quem sabe estaria recluso num quarto esfumaçado a fim de adiantar meu livro, no qual eu simularia estar em Roma tomando uma grapa num café sinistro que frequentei no tempo da ditadura.» (pg.162) O tom que o narrador usa para desfiar as suas lembranças é o de um menino a descobrir o mundo, e a descobrir-se no mundo, mas é também o de um homem adulto, consciente do envelhecimento, que recua ao passado para o confirmar permanentemente presente. É esse o grande gesto prestidigitador de Bambino a Roma, a ilusão de que o passado está arrumado seguida da estrepitosa revelação de ser tudo isso um presente contínuo que vamos refazendo à medida que os anos passam.

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