No dia 19 de novembro passado, teve lugar a entrega da 13ª edição do Prémio Literário José Saramago. A Blimunda publica neste número o discurso de Francisco Mota Saraiva, vencedor desta edição do galardão, e da escritora Adriana Lisboa, que fez o elogio ao romance vencedor.
“Se o medo maior, mais alto leio”
Francisco Mota Saraiva
1
Quando pensei na forma de agradecer este prémio, lembrei-me do medo.
Comecemos, então, pelo medo.
Comecemos pela vela acesa diante da obscuridade; diante da mesma obscuridade que Proust nos revela nas primeiras páginas do seu “Em Busca do Tempo Perdido” quando, depois da última leitura, ao adormecer, os assuntos dos livros se esvaem para o campo do ininteligível, do incompreensível
– Onde estamos? Quem somos nós? Entre a história vivida e a história lida, de que somos feitos?
Recordo, de forma tão vívida e tão lúcida – como se fosse hoje –, a dificuldade das primeiras leituras; desse exercício de juntar as letras, as palavras, depois, a frase, a ideia. Juntar tudo, embaralhar, e adormecer.
Mais de 30 anos passados e a leitura feita antes de adormecer é aquela que ainda me é mais agradável; aquela que fica algures nas franjas que separam a luz da escuridão, dessa escuridão que rapidamente se matiza de sonhos, memórias, recordações; perguntas estranhas entre a realidade e a fantasia.
O que é verdadeiro? O que é inventado?
Cada um terá a sua experiência enquanto leitor – é verdade. No entanto, o medo é comum – a todos, sem excepção. O medo que está para lá do extinguível. O medo da luz que se apaga no corredor. Quando voltará ela a entrar pela fresta debaixo da porta do nosso quarto? Sem a vela acesa, sem a luz no corredor trazida pelo mais vulgar dos candeeiros, sem a claridade do dia lá fora, não podemos ler; e, quando – e onde – não se pode ler, há medo; essa aflição que é a nossa maior cegueira.
E não se enganem: a escuridão é sabida, tem manhas, é traiçoeira; aviva-se de cores para nos iludir.
Aliás, recorde-se que, para Saramago, no seu “Ensaio [sobre a Cegueira”], a treva é feita de uma luz branca, luminosa – o medo que brilha na sua opacidade. A sombra espessa e terrível, porém, iluminada por uma massa de brancura.
E, todavia, é do medo, desse profundo, das entranhas da miséria e do desespero, dos algares e das cavernas sombrias de nós, que a arte sempre irrompe:
de profundis.
Foi precisamente desse profundo – do cárcere escuro e da remota solidão – que Oscar Wilde, apesar de injustamente condenado, escreveu uma das mais belas e capazes homenagens à Humanidade – a Humanidade que brilha e se alegra quando se entrega e se devota à arte, ainda que dor e beleza não deixem de ser inteiramente unas, ponta com ponta da mesma haste.
Vejamos:
foi, pois, da tela branca de Caravaggio que surgiu a Medusa, com os seus olhos esbugalhados de terror e o seu cabelo feito de serpentes, a expressão de um rosto deformado entre a vida e a morte;
foi da página vazia de Shakespeare que nos chegou Hamlet e a sua grande vingança, pontuada de dores, traições e violências de todos os géneros;
ou, ainda, da pedra lisa e esquálida que Michelangelo esculpiu Pietà, mãe, sofrida e pesarosa, que enternece no seu colo o corpo morto e macerado de Cristo, seu filho.
São estes exemplos da dor e da beleza enquanto partes vivas do mesmo organismo que habita o profundo. Como disse Oscar Wilde, “(…) há dor no nascimento de uma criança ou de uma estrela”. É a Arte pela Natureza; a Natureza pela Arte – digo eu.
2
Hoje, temos um certo sentimento relativamente comum: há mais medo. São mais as luzes que se apagam; e esta penumbra que é o nosso mundo enche-se do ruído próprio do escuro e do silêncio.
Como podemos ler debaixo das bombas de Gaza? Ou fechados nas burcas negras das mulheres afegãs? Entre os estreitos corredores das tendas de Rafah? Ou nos cascos naufragados no Mediterrâneo? Como podemos ler sob o jugo impassível de todos esses homens de olhos vermelhos e vorazes, esses cegos que não querem ler e que, com eles, nos arrastam para o seu fanatismo e ignorância?
O lugar da leitura deve ser, por natureza, um lugar cómodo, um lugar feliz; não pode ser um exílio, um degredo.
E embora sejam tantos os lugares afastados, incómodos e infelizes, gosto de pensar – ou talvez sonhar – que, algures, no desespero desses lugares escuros e cegos, arredados de lâmpadas, de lumes, de velas acesas, há ainda um resto de cera numa palmatória qualquer que se incendeia com um livro escrito; não porque os livros salvem, mas porque – creio – ajudam a salvar.
É óbvio que, ao invés do livro, o faminto prefere o pão; o cego a bengala; o amputado os braços ou as pernas; o bárbaro e o cruel a arma, a insígnia, o meio, o poder; mas nunca, nunca o livro.
E, como tal, não podemos dizer que os livros salvam; mas, de um certo ponto de vista, o que resta ao faminto que comeu o pão?, ao cego que encontrou o seu caminho?, ao amputado que salta e abraça?, ao bárbaro e ao cruel que, por fim, castigou?
O que fica, depois disso, não creio que seja o silêncio de uma saciedade.
Não pode ser.
3
Se vivemos no meio das vagas, morramos ao menos no porto.
A partir das Cartas a Lucílio, de Séneca, esta é a frase que dá título ao meu livro.
Mas, coloco a questão: será o porto um lugar mais seguro do que o lugar das vagas?
Talvez seja…
porém, também sei de que são feitos os portos – são lugares feitos de pedra ou de madeira sólida, que encerram em si o ideal de refúgio, asilo, amparo; mas são também os portos lugares estáticos, fixos, parados, quietos, aquiescidos; lugares lânguidos onde se prostra a apatia; e, para o bem e para o mal, lugares aonde se chega; mas são, antes de mais, lugares donde se parte; e, se para lá disso existem vagas, pois então que as domemos.
Quem é, afinal, o louco? Aquele que vai ou aquele que fica?
4
O escritor Robert Louis Stevenson referia-se ao ofício da escrita, ao seu próprio trabalho e dos seus pares, como this childish task, esta coisa infantil que os escritores têm de brincar com papéis, de rabiscá-los, de contar histórias.
E a verdade é um pouco essa – também eu nunca deixei de ser essa criança que, ao escrever, ao ler compulsivamente, afasta os medos da luz minguante e dos sonhos mais aflitivos por meio dos livros, das palavras, das letrinhas todas juntas em folhinhas de papel.
E sempre que o medo sobrevem com mais força, leio, leio alto; e se o medo maior, mais alto leio; porque o livro e o acto de leitura têm, em si, a generosidade e a nobreza dum grito que vem em nosso socorro, a força benigna e delicada de uma mão que cala o medo.
Por isso, peço-vos: não tenham medo; leiam. Leiam sempre.
E se tiverem medo, se acharem nas vagas o desconsolo da vida, não se esqueçam que, para o bem e para o mal, sempre acabarão por morrer ao menos no porto.
Tal como escreveu Saramago, na sua “Viagem [do Elefante”], “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”.
Para mim, esse sítio, é, hoje, o lugar deste Prémio.
Se as vagas, se um porto…
Termino.
Muito obrigado aos que me leram para que pudesse entrar em tão excelsa galeria de autores; e, sobretudo, muito obrigado aos bons livros e a todos os que os escrevem, que os preservam, que os alimentam;
aos livros, esse lugar de resistência da voz, das palavras, da memória. Esse lugar nosso, humano e vivo, onde iluminamos a escuridão e calamos o medo.
Obrigado.
“Um livro de sombras”
Adriana Lisboa
Morramos ao menos no porto é um livro de sombras. O que talvez nos cause espanto, num primeiro momento, se não estranheza. Afinal, vivemos um mundo de tantos holofotes, de tantas obviedades, de coisas que dão a impressão de precisar ser colocadas sem nuances, sem contradições e complexidade, sob pena de não serem compreendidas. Talvez seja natural, de tão urgentes que são as nossas questões neste momento, que a arte de certo modo entenda a si mesma como a mais radical tomada de partido: ou você é contra, ou você é a favor. Com isso se perde, porém, muito da natureza mesma da criação artística. Com isso, deixamos de fazer perguntas e procuramos apenas respostas prontas – e de preferência fáceis.
Em Morramos ao menos no porto, romance vencedor desta edição do prémio José Saramago, estamos diante de um mundo em que paira uma espécie de neblina. O sentido ora se vislumbra e ora escapa, o leitor se perde e se reencontra o tempo todo, como se estivéssemos andando numa floresta, à noite. Ou como se estivéssemos numa nau, em alto mar. Esse jogo entre o que se esconde e o que se revela mantém a nossa curiosidade viva: estamos sempre prestes a capturar alguma coisa e sempre vendo as coisas escapulirem das nossas mãos. As repetições de palavras e temas, com algumas variações, criam motivos que conferem uma qualidade quase musical ao texto.
Ouvimos ecos de algo que já tínhamos ouvido antes, e depois ecos desses ecos, e aos poucos um mosaico vai se completando. Um texto que não se distancia do que narra, que não tem pudor diante do que narra, mas que se mete ali dentro de corpo e alma, com todos os riscos que isso envolve.
O autor constrói um estilo muito próprio, quase um idioma particular, que parece ser o espelho da desintegração de um mundo que está, de fato, se desintegrando.
É o mundo do livro, o mundo ficcional deste romance e de seus personagens. Mas não será também, num certo sentido, o nosso mundo? Este daqui de fora, em que vemos num mesmo ano ondas de calor interrompendo as aulas nas escolas na Índia, nas Filipinas e na Tailândia, o fogo devastando os principais biomas brasileiros. Que não nos venham edulcorar a realidade, mas tampouco propor cartilhas maniqueístas, das quais é fácil demais tomar partido, mas que fazem pouco da nossa complexidade e das nossas contradições. Talvez seja de contradições que fale, em última instância, Morramos ao menos no porto: sobretudo as contradições do amor. A que ponto chegamos em seu nome, o quanto ele às vezes nos faz entender a covardia como coragem e a coragem como covardia, a razão como desvario e a loucura como lucidez.
Entre as vagas, entre as brumas, navegamos. Entre os nossos, entre estranhos, assustados, esperançosos, perplexos, navegamos, nas águas e nas páginas deste romance corajoso.