Depois da fome, a ilusão da fartura
Bonança
José Feitor
Imprensa Canalha
«Por ser imperativo apaziguar o rebanho, vaticinaram os gurus que o dinheiro nunca faltará se se deixar que as coisas sigam o seu curso natural, como o riacho, e se todos aceitarem placidamente as patranhas dos directores.» Assim começa este Bonança, retrato desencantado do quotidiano de boa parte do mundo e reflexão pouco abonatória para a humanidade sobre os processos sociais, económicos e políticos desencadeados pela Revolução Industrial e pela promessa liberal de fartura que lhe sobreveio. O pequeno detalhe de essa fartura não ser generalizada não impediu as loas ao mercado que, entretanto, se elevaram ao estatuto de palavra sagrada, e aqui estamos. Mais de dois séculos depois, entre o deve e o haver da História, olhar à volta e pensar continua a ser actividade que dispensa carvão, vapor e teares, preferindo outras mecânicas, nem sempre mais confortáveis.
Depois de Fome, publicado em 2022, José Feitor publica agora aquele que parece ser um seguimento natural desse volume anterior, mesmo que a leitura do novo livro não exija qualquer conhecimento do que o autor publicou previamente. Ainda assim, não é difícil ver Fome e Bonança como dípticos de uma reflexão mais ampla, ficando a pairar a hipótese de alguma continuidade.
O modus operandi deste livro, revelado no colofón, assemelha-se ao de outros trabalhos de José Feitor, e também aí a relação com Fome não passa despercebida: a partir de leituras e de uma observação do quotidiano (ponderada, mas também estupefacta), o autor estabelece uma reflexão que se vai construindo até dela fazer um livro, um opúsculo, como lhe chama. Esse livro nunca é uma paráfrase das leituras feitas, entre as quais se contam Adam Smith e Karl Polanyi, nem uma mera descrição daquilo a que poderíamos chamar o mundo à nossa volta. Textos e imagens convocam-se mutuamente sem nunca perderem a autonomia, permitindo confronto, complementaridade ou total independência. Essa é, aliás, um dos grandes prodígios de Bonança, que assenta num texto exemplar no que ao trabalho de linguagem diz respeito, da sintaxe à retórica, das imagens criadas verbalmente ao bom uso do sarcasmo como ferramenta de pensamento, bem como num conjunto de desenhos por onde desfilam, em metáforas, alguns delírios visuais com os pés bem assentes na terra e enorme potência narrativa, os últimos séculos de produção, consumo e ilusão colectiva. O outro, naturalmente, é a própria reflexão que se vai estendendo à medida que a leitura de texto e imagens avança, num discurso que nunca renega a complexidade de tudo o que aqui se discute em favor de fórmulas ou soluções milagrosas, mas que também não cede nenhum terreno à epidemia de relativismo que tudo nivela, tantas vezes reduzindo a nada discussões que talvez importassem alguma coisa para o modo como queremos viver.
Não há optimismo nestas páginas, nem tal se esperaria: «Ao contrário de tudo o que está vivo, este sistema de bonança não decai pois é, ele próprio, a decadência. A homeostasia que o garante resulta do equilíbrio milagroso entre os horrores que alimenta e as graças que despeja em cascata sobre a cabeça de todos.» Também não há complacências, planos de fuga, iluminações proféticas. Há matéria abundante para pensar e vontade de o fazer seriamente, o que não é pouco quando se trata de olhar de frente as pedras da lei a que chamamos mercado.