Três livros sobre casas
A casa é um tema presente no álbum ilustrado. De lugar de intimidade, onde acontecem as relações familiares ou de crescimento individual, a uma personagem histórica, a casa tem sido descrita e representada de muitas formas. Como exemplo, podemos destacar dois álbuns ilustrados muito distintos, editados em Portugal já neste milénio: A casa, de Roberto Innocenti (Kalandraka) e Onde moram as casas, com texto de Carla Maia de Almeida e ilustração de Alexandre Esgaio (Caminho).
Serve o preâmbulo para introduzir três títulos recentemente publicados que voltam a pensar a ideia da casa como espaço íntimo, como representação da diversidade ou como lugar poético.
Uma casa é uma montanha é um chapéu
Filipa Tomaz, Letícia do Carmo
Yara Kono, Fátima Alves
Trienal de Arquitetura de Lisboa
Uma casa é uma montanha é um chapéu, editado pela Trienal de Arquitetura de Lisboa, descreve a casa em vários sentidos. Começa por compará-la com uma pessoa, com partes do corpo e emoções. Dos elementos que a constituem – telhado, portas, janelas, infra-estruturas – passa para a sua função na vida de quem a habita – um lugar de segurança, de rotinas, de intimidade. Relaciona-a com o espaço envolvente e confere-lhe várias identidades, de utilidade pública e privada. Finalmente, apresenta o processo de criação e construção como algo de importante e valioso. O álbum dialoga com o imaginário infantil nos jogos de representação, na poética das imagens textuais, na identificação dos momentos, ações e espaços que promove.
A simplicidade das ilustrações, que destacam elementos e enquadramentos simples, reforçam a atenção sobre o essencial da mensagem do texto. Ainda, as formas e as cores aproximam-se daquelas que as crianças desenham. Apesar de algumas estruturas sintáticas e algum vocabulário exigirem um domínio da leitura que não se adequa à primeira infância, este é um álbum para leitores infantis, que podem ser acompanhados por um mediador adulto. Acresce ainda ao livro o registo em braille e a impressão das ilustrações em relevo, sendo o primeiro álbum ilustrado com estas características a ser editado em Portugal. Trata-se de um livro acessível a leitores cegos ou com baixa visão.
Casa de Família
Sophie Blackall
Fábula
Tradução de Susana Cardoso Ferreira
A casa também é o lugar da memória, o lugar onde a vida acumula histórias através de registos e objetos. Nesta Casa de Família que alberga um casal e os seus doze filhos, a visita guiada a cada divisão implica um apontamento sobre a vida destas pessoas que crescem, mudam e permanecem. As rotinas são replicadas no texto e nas ilustrações que vão mostrando, parcelarmente, os vários espaços interiores. Todo o texto é apenas uma única e longa frase. Enumerativa, a frase vai revelando ações dos elementos da família, obedecendo a uma cadência regular. Esta cadência representa muito bem a passagem do tempo quotidiano numa espécie de invisibilidade poética e feliz. Nada do que acontece é extraordinário: as crianças ajudam a cuidar do gado, vão à pesca, colhem fruta, ajudam nas tarefas domésticas, fazem disparates, cuidam-se entre si, ficam doentes, ouvem ralhetes e ficam de castigo, guardam objetos significativos, partilham, crescem, partem. Até alguém reencontrar a casa e a tornar sua. Esta é a história real da autora, que comprou a casa em ruínas e recriou a sua história a partir dos vestígios que ali encontrou e dos testemunhos de descendentes. No final da narrativa, deixa uma extensa nota em que explica como encontrou a casa e a ligação que estabeleceu com ela.
Casa
Carson Ellis
Orfeu Negro
Tradução de João Berhan
Se uma casa é um espaço de intimidade, segurança e conforto, se espelha quem lá vive, a verdade é que casas há muitas, todas diferentes. Carson Ellis apresenta um conjunto delas, reais ou imaginárias, habitadas por humanos, animais ou seres mitológicos. Com este exercício de representação e de criatividade, abre espaço para a casa de cada um de nós. Não é à toa que um álbum ilustrado com tantas casas dentro opte por uma capa com tantas habitações e o título no singular: Casa. Entre o humor, o apelo ao imaginário e à curiosidade pelo outro, texto e ilustração conjugam-se num desafio de integração de cada um e de todos, nas suas diferenças geográficas, morfológicas, culturais, profissionais. A simplicidade do discurso verbal, cujas frases intercalam algumas perguntas com uma maioria de afirmações, comprova uma intenção clara e uma composição económica do texto, destacando as ilustrações detalhadas e, aqui e ali, menos reconhecíveis. Ao leitor cabe-lhe explorar, comparar, questionar o que lê e responder, se assim o entender.
É uma coincidência feliz, a da publicação quase simultânea destes três álbuns. A sua leitura não obedece a nenhuma ordem, apenas se contamina, pela relação que estabelecem com quem os lê, e pelas relações que ampliam e valorizam. Cada um conta a sua história e os três contribuem para outras narrativas individuais e coletivas.