Crítica Sara Figueiredo Costa 16 Agosto 2024

Apocalipse e renovação

A Estrada
Manu Larcenet
Ala dos Livros
Tradução de Ricardo Magalhães Pereira

A adaptação de romances para banda desenhada redunda não raras vezes num exercício vão de mera transposição: uma narrativa que tirava partido do labor da linguagem e das suas possibilidades é recontada a partir da ligação entre texto e imagem, sem que nada se acrescente, sem que novas leituras ou interpretações se possibilitem. Esses exercícios devem frequentemente a sua redundância à premissa de que a linguagem da banda desenhada permite “simplificar” uma narrativa, recontando-a com recurso às imagens, como se a leitura de uma gramática visual fosse processo mais simples e isento de camadas semânticas. 

Manu Larcenet escapa a todas essas redundâncias numa adaptação de A Estrada, do norte-americano Cormac McCarthy, editada entre nós pela Ala dos Livros. A narrativa que acompanha a deambulação de um pai e um filho num cenário pós-apocalíptico, e que McCarthy trabalhou tirando da linguagem todo o seu potencial cortante, encenando a desesperança e a continuidade como se não fossem antagónicas, ganha aqui uma materialidade visual que lhe estende os sentidos. Larcenet já havia feito exercício semelhante com a adaptação de Relatório de Brodeck, romance do escritor francês Philippe Claudel (também editado pela Ala dos Livros), e esta incursão pela prosa de Cormac McCarthy atesta que as possibilidades de dialogar com um romance são infinitas e não dependem de fórmulas adaptativas ou esquemas pré-determinados, assim haja engenho e arte.

Esta é A Estrada de McCarthy, mas é também – e sobretudo – a que Manu Larcenet retirou da prosa do livro, recriando-a numa paleta cromática dominada pelos pretos, cinzentos, alguns apontamentos em tons sépia e um branco por vezes tão luminoso que agride o olhar na leitura. Esse efeito que as palavras de McCarthy evocam frequentemente, o de uma acutilância quase física que evoca os cheiros, a fome e o desespero, tem no traço de Larcenet outras vertentes para além do trabalho da luz. Por um lado, há uma mise en pâge que vai alternando ângulos e planos até criar sequências que nos puxam inexoravelmente para o detalhe onde tudo se joga narrativamente (os rostos, mas também aquele pedaço de comida encontrado no lixo, o corpo sem vida na beira da estrada, o fósforo que pode aquecer e iluminar ou ajudar a destruir o que resta do mundo). Por outro, há um labor notável de criação de texturas que nada tem de exibicionismo virtuoso, antes constrói várias camadas semânticas numa narrativa onde, a cada passo – também literal, se pensarmos que as personagens estão em constante andamento –, pessoas, cenário e objectos se vão tornando uma espécie de massa comum. As texturas criadas por Larcenet têm esse efeito de tudo minarem, como um desespero que se espalha da pele para as roupas, das roupas para o chão e daí para o toda a parte.

Com esta versão de A Estrada, Manu Larcenet alcança a dupla proeza da fidelidade narrativa e da criação de um universo que, sendo devedor de uma criação anterior, não é secundário, derivativo ou apenas interpretativo. Há um gesto inaugural nesta banda desenhada, uma vontade expressa de encenar um mundo, e talvez a sua grande chama seja a de juntar cosmogonia e apocalipse, lembrando que a roda do tempo nunca pára e que as destruições totais talvez só existam como refundações.

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