José Saramago: “Não vivi nada que valha a pena ser contado”
Em junho de 1994, José Saramago concedeu ao Leituras, suplemento cultural do Público, uma entrevista na qual falava, entre outros assuntos, sobre o livro que estava a escrever e que viria a publicar no ano seguinte, Ensaio sobre a Cegueira. Nesta edição a Blimunda recupera a conversa que o escritor teve com o jornalista Mário Santos há 30 anos.
Como é que está a correr o Ensaio sobre a Cegueira?
Um romance – ou qualquer coisa que se pareça com isso, neste caso – é uma obra que necessita de uma disciplina que não tenho podido impor-me, por causa do corrupio de viagens em que tenho andado. Estar oito ou dez dias em casa no intervalo de duas viagens não dá para eu trabalhar. É um livro particularmente difícil porque, embora haja uma sequência, é um história um pouco atípica. É a primeira vez que tenho tanta dificuldade em avançar com um livro. É uma história em que as personagens não têm nome e conduzir, ao longo de duas ou três centenas de páginas, uma quantidade de figuras às quais não posso dar um nome levanta dificuldades tremendas. É um livro em alguns aspectos inesperado. Não é que haja mudanças radicais, mas são muitas. É um livro que apela muito menos para os sentimentos do leitor na sua relação com a história ou com as personagens. Porque não as há: elas aparecem e desaparecem, e se reaparecem não se sabe que são elas. No fundo é como se você tivesse diante de si uma multidão de quem sabe pouco e, insisto, de quem não conhece esse dado essencial que é o nome. Porque quando algo tem nome existe: uma cadeira existe mais se eu lhe chamar cadeira.
Disse “um romance ou qualquer coisa parecida com isso”. Porquê?
Se eu tivesse que defini-lo “a priori”, chamar-lhe-ia uma espécie de conto filosófico. Já se está a ver que vai muito pelo caminho da alegoria. E é curioso, porque a alegoria nunca foi nada que eu estimasse muito, porque nunca achei que valesse muito a pena dizer uma coisa falando doutra. Digamos que tem uma intenção: dizer, e se possível demonstrar, que todos somos cegos.
Que aconteceu ao “Livro das Tentações”, anunciado há tantos anos?
Esse livro começou por partir de uma ideia: a de que a santidade perturba a natureza. Com o passar do tempo, isso deixou de ter muito significado para mim. E o livro deixou de ter o sentido que tinha antes, ligado ao religioso: será o livro da memória que eu tenho de mim próprio, uma autobiografia. Mas como considero que não há qualquer razão para que eu fale da minha vida de adulto – não vivi nada que valha a pena ser contado -, pára pelos 14 ou 15 anos. As tentações são as boas e as más, isso que é, digamos, a natureza, o mundo, que seduz ou que ameaça. As notas que tenho já dariam para metade do livro e devo dizer-lhe que chega a ser um pouco inquietante a nitidez com que me surgem as recordações, provavelmente porque já tenho esta idade…
No diário diz que é a primeira vez que está a escrever mais do que um livro ao mesmo tempo. As dificuldades também estão relacionadas com isso e com a mudança para Lanzarote?
Evidentemente, a mudança para Lanzarote é outro factor responsável pela lentidão com que tenho estado a trabalhar: há a adaptação a um ambiente novo. E depois também se veio meter a história dos “Cadernos” Porque a verdade é que os “Cadernos” são um livro, e para escrevê-lo é preciso tempo e é preciso reflexão. E de repente, pela própria força das coisas, o diário acabou por ocupar o primeiro lugar.
Quer dizer que se tornou “indisciplinado”, exactamente quando menos o podia ser?
Tudo se complicou na minha vida a partir do “Evangelho” porque, se é certo que eu já viajava muito antes, depois começou a ser um pouco mais difícil gerir o meu tempo. Se acrescentar a isto as tentações de um meio completamente novo, verá que isso tinha que ter efeitos nessa disciplina que era quase burocrática. Mas hoje há já uma espécie de regresso das águas ao leito, à velha disciplina.
Por onde passa a “velha disciplina”?
Passa por trabalhar todos os dias. A tarde, normalmente. Eu até costumava dizer que escrevo porque almocei e janto porque já escrevi. Isso até parecia estranho porque, supõe-se, depois do almoço há um certo entorpecimento. Mas acontece levantar-me da mesa do almoço e ir sentar-me à mesa do trabalho. A primeira condição para escrever é sentar-me.
E senta-se por pura autodisciplina?
De certo modo sim porque, em regra, começo cada livro um ou dois meses mais tarde do que aquilo que podia. Durante esse tempo resisto a sentar-me, por saber que a partir desse momento tenho de continuar sentado. A não ser para tomar nota de uma ideia súbita, não creio no impulso que leve uma pessoa a sentar-se para escrever. Nunca isso sucedeu comigo. A regra é que o trabalho ficou interrompido e eu sento-me para continuar. Mas a condição, insisto, é sentar-se. Tal como um operário que tem de entrar à hora, aproximar-se da sua banca, colher as ferramentas e continuar com o seu trabalho.
Não consegue escrever em viagem?
Não consigo, nunca. Necessito do meu lugar de trabalho, dos objectos, das pessoas. Num quarto de hotel o mais que posso fazer, nesta altura, é tomar notas para o diário. E seria mesmo incapaz de fazer como colegas meus que dizem que vão um mês para o Algarve, por exemplo, para escrever um livro. Escrevo sempre no mesmo sítio, no meu escritório. Não necessito de silêncio. Os ruídos normais da casa — uma porta que se fecha, o murmúrio de vozes — não me incomodam.
Usa computador?
Já não escrevo nada à mão, nem sequer cartas. Escrevia numa velha máquina Hermes, que comprei em segunda mão, há uns 30 anos, e que chegou ao fim quando acabei a “História do Cerco de Lisboa”. Está lá em casa como uma relíquia pessoal: é como se tivesse uma enxada antiga… Desde o “Evangelho”, uso uma coisa óptima, que é o “videowriter” da Philipps. E tão bom que a Philipps deixou de o fabricar! E uma máquina que faz tudo aquilo que um computador faz quando escreve e não tem todas as mil e uma funções mais que o computador tem. Além disso, tenho um computador pequeno para as viagens, para tomar notas. Suspeito que um simples bloco de notas faria as funções, mas o computador é limpo e rápido e, já que me habituei a ele, uso-o.
Reescreve muito? Faz muitas versões?
Emendo mais hoje do que emendava antes. Tenho mais a necessidade de ser rigoroso: não falo da beleza da frase ou do estilo, falo de encontrar o termo exacto, se é que tal existe… Mas não há versões, os meus livros crescem a partir, digamos, da primeira palavra, não há uma versão a desenvolver. Cada palavra necessita da anterior e o livro vai por adições sucessivas de palavras. Não há plano. Tenho uma ideia, sei onde é que quero chegar, mas não sei como é que lá chego, não sei por onde vou. O José Manuel Mendes fez uma observação muito aguda: falou da minha escrita como uma escrita desprogramada. Apesar do risco que está contido nisto, e tanto quanto eu posso julgar, a impressão que tenho é que os meus livros estão equilibrados. Mas estão equilibrados por essa espécie de crescimento biológico.
Não havendo plano, o avanço desprogramado da escrita pode alterar a ideia do sítio a que quer chegar?
Não, isso não. A disponibilidade está entre a primeira página e a última. Uma palavra necessita de todas aquelas que foram escritas antes e o livro avança como se todas as palavras escritas fossem absorvendo a palavra seguinte, incorporando-a. Por isso é que se estiver a escrever o capítulo três, digamos, mesmo que tenha uma ideia muito clara do que vai ser o capítulo dez não o escrevo. E completamente impossível! Se é do capítulo dez que se trata, tenho de chegar à última palavra do capítulo nove, que no fim do capítulo oito ainda não sei qual seja…
Tem já alguma ideia para outros livros?
Não, nem isso me preocupa. A ideia do “Ensaio…”, por exemplo, nasceu num restaurante, enquanto esperava que me servissem. Os meus livros nascem quase todos assim. Não procuro os temas: fico tranquilamente — a palavra não é exagerada — à espera daquilo que venha… Provavelmente, é isto que explica que eu não escreva romances que sejam variações dos anteriores.