Destaque Sara Figueiredo Costa 3 Junho 2024

Łódź, a cidade polaca da banda desenhada

No centro da Polónia, Łódź já foi conhecida como o coração da indústria têxtil do país. Agora, depois de anos de algum abandono, a sua reconstrução passa pela manutenção dos grandes edifícios fabris reconvertidos em pólos de cultura, conhecimento e criação artística, entre eles o Centro de Banda Desenhada e Narrativa Interactiva.

Para vários autores portugueses de banda desenhada, Łódź é uma cidade bem conhecida. É lá que se realiza, desde 1991 o mais antigo festival de banda desenhada da Polónia, juntando autores de todo o mundo (com vários portugueses a constarem regularmente no cartaz) e leitores cuja afluência cresce a cada ano. Łódź, que quase sempre lemos, erradamente, à portuguesa, mas que na verdade soa a qualquer coisa como “wudj”, é uma antiga cidade industrial, grande centro da indústria têxtil polaca ao longo do século XIX e início do XX. A partir de Varsóvia, a capital, o comboio leva uma hora e as viagens são frequentes. Da estação à praça onde fica o Centro de Banda Desenhada e Narrativa Interactiva, inaugurado em 2023, a caminhada é curta. Num instante conseguimos ver os antigos edifícios fabris, entretanto restaurados, mantendo o tijolo vermelho, as enormes janelas e algumas marcas industriais (chaminés, placas eléctricas, restos de maquinaria pesada aqui e ali), e agora transformados em espaços culturais. 

Instalado no edifício que era a zona operacional de uma central eléctrica, responsável por alimentar as fábricas em redor, bem como a própria cidade, o Centro de Banda Desenhada e Narrativa Interactiva (Centrum Komiksu i Narracji Interaktywnej) é, agora, o coração do Festival, que até aqui acontecia em diferentes espaços. À volta, outros edifícios restaurados compõem uma espécie de centro cultural no coração de Łódź: um planetário, um centro de ciência e tecnologia, um espaço infantil e o Centro Nacional para a Cultura Cinematográfica. Tudo construído com o apoio da cidade e de fundos europeus.

É Joanna Birek-Fita quem nos recebe à porta do Centro de Banda Desenhada e Narrativa Interactiva, percorrendo connosco os diferentes espaços deste edifício por onde circulam, na manhã em que o visitamos, várias crianças e adolescentes, bem como alguns adultos. No espaço que é simultaneamente biblioteca e lugar de encontros com autores, conversas e debates, Joanna Birek-Fita, uma das responsáveis e dinamizadora do Centro, traça em poucos minutos a evolução do mercado de banda desenhada na Polónia, uma contextualização que ajuda a perceber o lugar deste Centro nas muitas mudanças a que o país assistiu nas últimas décadas. «O mercado de banda desenhada na Polónia é vibrante, há muitas editoras, publicam-se muitos títulos, de uma grande variedade, traduz-se muito e de todo o mundo, mas o número de leitores ainda não é muito grande.» O Festival de Łódź tem acompanhado esse crescimento de títulos e editoras, procurando dar o seu contributo para a formação de novos leitores, mas, como diz Joanna Birek-Fita, «foi com a mudança política na Polónia que isso começou a acontecer, e não tanto por causa do festival. Antes de 1989 não havia acesso a livros de banda desenhada estrangeiros, depois também houve a crise económica… Nos anos 90, surgiu a Egmont, uma grande editora com uma secção de banda desenhada, que começou a mudar o mercado. E começaram a circular comics norte-americanos, nomeadamente super-heróis, que tinham muita procura e que, antes de 1989, não chegavam cá. O mercado cresceu, evoluiu, mas digamos que apesar de termos muitos leitores dedicados, bem como editores, a banda desenhada na Polónia não é exactamente uma indústria mainstream

O festival foi fazendo o seu caminho, acontecendo todos os anos entre Setembro e Outubro, cresceu e hoje é o maior evento de banda desenhada na Polónia. Foi esta dinâmica criada ao longo do tempo por Adam Randoń, director do festival, acompanhado de várias outras pessoas, entre autores, editores, tradutores e diversos colaboradores, que ajudou a criar sinergias para que o Centro de Banda Desenhada e Narrativa Interactiva se tornasse uma realidade em Łódź. A par da banda desenhada, também os jogos de vídeo ajudaram a trazer público ao festival, tendo sido integrados na sua programação em 2012: «O motivo é simples», explica Joanna Birek-Fita, «os vídeo-jogos estavam a ganhar mercado e popularidade e isto foi uma forma de procurar outras audiências para além da dos leitores de banda desenhada. Podemos dizer que há alguma coincidência no público, ainda que haja quem venha só por pelos jogos ou só pela banda desenhada.» Quanto ao Centro, acabou por ser o resultado desse entusiasmo de tantos anos em torno, e a partir, do festival: «Adam Randoń, que tem sido o director do festival há muitos anos e está envolvido desde o início, sempre teve o sonho de criar um lugar como este, um centro dedicado à banda desenhada, e foi procurando formas de o conseguir. E conseguiu, primeiro com o apoio das autoridades municipais para o festival, depois para a criação deste espaço, neste edifício, que junta a banda desenhada e as narrativas interactivas, nomeadamente os vídeo-jogos. É uma parceria que está para durar, esta da banda desenhada e dos jogos.»

O Centro de Banda Desenhada e Narrativa Interactiva começou a ser concretizado em 2017, com as obras a começarem no ano seguinte e a prolongarem-se por três anos. «Em 2020 começámos a trabalhar na exposição permanente, na colecção, ao mesmo tempo que as obras avançavam, mas entretanto começou a pandemia…», conta Joanna Birek-Fita. «Nesse ano, fizemos o festival on-line e fomos adiando a abertura do Centro, que acabou por só acontecer em 2023.» Subindo aos andares superiores do Centro, são os jogos de vídeo que primeiro captam a atenção dos visitantes. Há uma sala cheia de antigas máquinas de jogos, todas em funcionamento, que podemos experimentar utilizando o código gravado na pulseira que serve de bilhete de acesso ao espaço. Para além da nostalgia, sobretudo para os visitantes mais velhos, que se lembram bem das salas de jogos onde se jogava a troco de algumas moedas ou dos velhinhos Spectrum que algumas pessoas tinham em casa, este espaço é também um pedaço da história de uma indústria que se agigantou nas últimas décadas, competindo, hoje, com as séries televisivas, o cinema e a leitura. Cumprindo a sua vocação pedagógica, esta sala oferece algum divertimento, sim, mas é também a ante-câmara de várias outras salas onde podemos aprender, de forma detalhada e interactiva, como se cria um jogo de vídeo. Há estações onde experimentamos texturas, iluminação, criação de personagens, movimentos ou sons, sempre com explicações muito claras, exemplos concretos e a oportunidade de pormos as mãos na massa. Os exemplos são muitas vezes tirados de jogos criados ou produzidos na Polónia, sendo que The Witcher (que é também livro de banda desenhada, série televisiva e vários outros produtos, sempre a partir dos livros originais escritos pelo polaco Andrzej Sapkowski) é o exemplo mais frequente, fazendo jus à imensa fama do empreendimento, que conquistou o mercado mundial de jogos de vídeo e tem inspirado vários outros projectos na mesma área.

Segue-se o último andar, totalmente dedicado à banda desenhada. Aqui, como nos explica a nossa guia, o objectivo era «criar uma exposição pedagógica, que mostrasse com detalhe os vários níveis da linguagem da banda desenhada, mas também percorrer a história da banda desenhada polaca». Para além de depoimentos de autores, editores e críticos de banda desenhada, este espaço tem diferentes módulos que tornam claras questões como a elipse (o espaço em branco entre vinhetas, onde parte importante da narrativa acontece), a estruturação das pranchas, os modos narrativos possíveis ou a caracterização das personagens. A exposição está feita de modo a ser compreendida por públicos de todas as idades, mas em momento algum cede à simplificação; pelo contrário, cada aspecto abordado é esmiuçado com detalhe, sempre com o apoio de material interactivo (não necessariamente em ecrãs) que permite experimentar e perceber aquilo que se mostra. Por exemplo, há um painel com a representação básica de uma personagem, cujas feições podemos ir alterando com olhos, bocas e narizes magnéticos que ajudam a compreender os estados psicológicos e emocionais transmitidos por diferentes traços e definições fisionómicas. Ou um painel com as várias espécies de balões usadas na banda desenhada onde podemos escutar, em áudio, a diferença entre um balão de traço carregado, contornos bicudos e letras a negrito, que normalmente indica uma fala em voz muito alta, ou um balão de pensamento, que na verdade não escutamos, ou fazemo-lo em registo interior.

Aos conteúdos de carácter pedagógico juntam-se, nesta exposição, livros, revistas e algumas pranchas originais de banda desenhada. Ficamos a conhecer a história desta linguagem na Polónia, com exemplares das aventuras Czyli Przygody Szalonego Grzesia, do cartoonista Karol Mackiewicz, ou da série Koziołek Matołek, da dupla Kornel Makuszyński and Marian Walentynowicz, ilustrando os primórdios da publicação de banda desenhada em jornais, revistas e livros, bem como de artistas contemporâneos, como Jakub Rebelka ou Joanna Karpowicz. E, claro, há muitas pranchas de Grzegorz Rosiński, o autor polaco de banda desenhada que maior reconhecimento mundial alcançou até agora, desenhando abundantemente para o mercado franco-belga. O autor da série Thorghal é um apoiante declarado do Festival de Łódź e do seu Centro de Banda Desenhada e Narrativa Interactiva, a quem entregou parte considerável do seu acervo, estando algumas pranchas originais desse acervo espalhadas pelas paredes do Centro.

Para além dos espaços expositivos e da biblioteca, o Centro de Banda Desenhada e Narrativa Interactiva é também um dos sítios possíveis para estar, conversar ou beber um café no centro da cidade de Łódź. No piso térreo, ao lado da cafeteria, uma livraria oferece uma boa selecção do que se publica na Polónia em termos de banda desenhada, para além de algumas edições internacionais, importadas dos respectivos países. Lá fora, na praça, percebe-se o potencial deste enorme centro cultural instalado no coração de uma antiga cidade industrial. Se a cidade não sucumbir aos processos de gentrificação que tantas vezes acompanham a renovação de centros urbanos a partir de projectos culturais e artísticos, é bem possível que Łódź recupere o esplendor de outros tempos, agora sem fábricas, mas com a arte e a cultura a fazerem mover esta cidade polaca. 

*Agradecimentos a Jakub Jankowski, tradutor polaco (de português, entre outras línguas) que connosco viajou até Łódź, sempre disponível para falar de banda desenhada polaca, entre outros temas.

→ ec1lodz.pl