Que faremos com este legado?
Em abril, Pilar del Río foi uma das convidadas do TEDxPorto2024, cujo tema este ano era Legado. Publicamos neste número da Blimunda a íntegra da intervenção da presidenta da Fundação José Saramago no evento na cidade do Porto.
No dia em que o escritor morreu as pessoas saíram à rua com os seus livros. Podia ser o argumento de um romance de José Saramago, mas é a história da sua vida. Aconteceu em Lanzarote, onde viveu os últimos 17 anos, e em Lisboa, para onde o seu corpo foi levado.
Em Lanzarote, os seus vizinhos saíram à rua e às varandas das casas para ler em voz alta passagens dos livros que ele tinha escrito na ilha. Uma forma de agradecer e de dizer: “Manteremos a tua voz”. Em Lisboa, as pessoas que foram à Câmara Municipal para se despedirem levaram livros, que levantavam ao passar pelo caixão. No dia seguinte, no caminho para o cemitério, por onde o corpo de José Saramago passava havia homens e mulheres que levantavam as palavras por ele escritas. Dos seus títulos, os que se viam com mais frequência eram “Todos os Nomes” e “Levantado do Chão”. Não é por acaso, os leitores sabem o que fazem. A gratidão é o mais belo exemplo de fortaleza humana.
José Saramago escreveu mais de 40 títulos, a sua obra está traduzida para mais de 60 idiomas. Há muito tempo que se perdeu a conta a quantos exemplares de livros de José Saramago foram publicados no mundo. São muitos milhões, se fossem pessoas formariam uma nação maior do que muitas das que conhecemos. No fundo, nós, leitoras e leitores de Saramago, somos uma super-nação. Foi o seu legado, legado que deve ser cuidado por quem lê.
Cada vez que uma pessoa abre um livro a obra renasce, renova-se e renova-nos. Enquanto nós, seres humanos que lemos, existirmos, mantém-se o legado de quem escreve. O legado que nos faz mais fortes, inteligentes, sensíveis e indestrutíveis, apesar dos assédios diários que sofremos.
Um dia perguntei a José Saramago o que queria de mim quando ele já não estivesse. “Continuar-me”, respondeu. Por isso, aqui estou, afirmo-o com orgulho e humildade.
Em 2007, três anos antes do dia em que “deixou de estar”, foi criada a fundação que leva o seu nome e na qual milito. Na declaração de princípios que escreveu, José Saramago deixou muito claro que a fundação não nascia para “contemplar o umbigo do seu autor”. Acrescento, nem o umbigo do autor nem das pessoas que a fundação congrega. Contemplar o umbigo seria demasiado banal, a Fundação nasceu com a ambição de impulsionar os direitos humanos pelo mundo, o “Mandato Saramago”, como lhe costumo chamar. Por isso, com diversas instituições e pessoas, elaborámos a Declaração Universal de Deveres Humanos, porque os seres humanos, todos, importam. Existimos também para propiciar encontros de culturas e para chamar a atenção sobre os valores do ambiente, que é o espaço onde devemos desenvolver-nos, os nascidos no planeta Terra, ou seja, na pátria de todos os seres vivos.
A fundação cuida do pensamento de José Saramago, que é um pensamento ferozmente humano, mas quem cuida da sua obra são os seus leitores. Nós, leitores, somos os responsáveis pelo legado de escritores como William Shakespeare, Luis de Camões, Miguel de Cervantes, Frank Kafka, Teresa de Jesus, Virgínia Woolf, Federico García Lorca, Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges, Emily Dickinson, García Márquez ou José Saramago. Todos são nossa responsabilidade. E assim vamos mantendo o mundo desde as primeiras letras que se conservam. Os herdeiros legais dos escritores um dia deixarão de estar, mas os herdeiros afetivos, esses, nunca desaparecem.
Quando eu era adolescente, uma frase de Antígona presidia ao meu quarto: “Não nasci para compartilhar ódio, senão amor”. Isso era possível porque Sófocles, embora tivesse vivido quatro anos antes de Cristo, fazia parte da minha vida, como na de tantas outras pessoas que o lêem, assistem a adaptações teatrais das suas obras e assim sentem as suas imortais tragédias.
De Sófocles, de Borges, de Pessoa, de José Saramago, e dos demais autores citados ou por citar, sou herdeira: na minha casa estão os seus livros, que abro e acaricio sempre que posso, como estou certa de que muitos dos que aqui estão também fazem, porque os livros têm gente dentro, o seu autor. Acarinhemos José Saramago, já que hoje falamos dele e de nós, herdeiros do seu legado.
No começo deste ano estive em Estocolmo para cumprir um pedido que a Academia Sueca fez a José Saramago e que não pôde ser cumprido porque não somos donos do tempo. Entreguei, no Museu do Nobel, alguns objetos de José Saramago que agora compõem o acervo da instituição, ao lado de peças pertencentes a centenas de prémios Nobel de várias outras áreas do conhecimento. José Saramago nunca foi um homem de manias, não tinha excentricidades, não usava bastão ou um chapéu Panamá, vestia-se de maneira sóbria. Não tinha sequer uma caneta preferida ou a máquina de escrever que usou a vida toda. O que poderíamos, então, deixar no museu do Nobel que fosse representativo do autor de «Memorial do Convento» e «Ensaio sobre a Cegueira»? Tivemos uma ideia: além da edição fac-símile de «Claraboia», segundo romance que escreveu e que não foi publicado na altura, deixámos um par de óculos com os quais via o mundo, também a nós, seus herdeiros, e com os quais olhava para dentro de si e tentava perceber de que estamos feitos. E para quê.
Também levámos uma pedra, uma simples pedra para a qual ele olhava como se fosse o centro do mundo. Essa pedra fazia parte da coleção que José Saramago tinha em casa. Eram pedras recolhidas em sítios que o marcaram: Palestina, Machu Picchu, Castril, Chiapas, Timor, Atenas, Ilha Negra, Foz Côa, etc… José Saramago gostava tanto de pedras que colocou uma delas no título de um dos seus livros, «A Jangada de Pedra», essa jangada que navega entre mares para nos aproximar. E pronunciou uma conferência em Itália, publicada pela fundação, intitulada «Da estátua à pedra».
José Saramago dizia que era um escritor que não inventava nada – o que não é de todo verdade. O que fazia era, segundo as suas palavras, levantar uma pedra que encontrava pelo caminho para mostrar o que havia por baixo. Também dizia que a sua obra até ao «Evangelho segundo Jesus Cristo» era uma tentativa de descrever uma estátua e que a partir do «Ensaio sobre a Cegueira» o seu interesse era falar da pedra a partir da qual fora feita a estátua. Por isso, levámos ao Museu do Nobel uma pedra de Lanzarote, uma simples pedra que José Saramago um dia recolheu numa praia da ilha, porque pensámos que era uma boa maneira de dizer quem é.
Desde 2011, a Casa de Lanzarote onde José Saramago escreveu todos os seus livros a partir de «Ensaio sobre a Cegueira» até «Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas» está aberta ao público. Aí se pode ver o seu escritório, a sua biblioteca e a cadeira onde se sentava no jardim, diante de uma pedra, para admirar o pôr do sol com vista para o mar.
Abrir a casa e a Fundação é só uma pequena retribuição para com os herdeiros afetivos de José Saramago. Um dia já não estaremos aqui. Já não haverá fundação, nem casa, mas os livros escritos por José Saramago permanecerão nas bibliotecas dos descendentes daqueles que um dia se despediram do escritor empunhando os seus livros. Aos leitores daquele dia, aos de hoje e aos do futuro, obrigada. Por eles e por nós, que hoje lemos, o mundo mantem-se na sua órbita.
José Saramago escreveu uma obra de teatro sobre Luis de Camões cujo título é «Que farei com este livro?» E vocês, leitores, o que farão com este livro? Atrevo-me a perguntar: o que faremos, nós leitores, com os livros que recebemos? Que faremos com o legado de José Saramago?
Pilar del Río
(Presidenta da Fundação José Saramago)