100 Anos de Sam e continuamos a rir
Foi com casa cheia que o Museu Bordalo Pinheiro inaugurou a exposição Não ria. O humor é um assunto muito sério – 100 anos de Sam. Homenageando o cartoonista no ano em que completaria um século de vida, esta mostra percorre parte da sua obra e pode ser vista, em duas partes, até ao próximo mês de Maio.
O pátio do Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa, foi pequeno para a multidão que ali se reuniu no passado dia 31 de Janeiro, na abertura da exposição Não ria. O humor é um assunto muito sério – 100 anos de Sam. A conversa entre Luís Afonso, Nuno Saraiva e Nuno Artur Silva, com moderação de Fernando Alvim, terá contribuído para esta afluência de gente, mas percebeu-se, ao longo das intervenções do painel e do público, que Sam e as suas personagens continuam a ser parte integrante de um património colectivamente reclamado.
O cartoonista que ocupa lugar cativo nas páginas do Público com o seu Bartoon, Luís Afonso, declarou nessa conversa que «o Guarda Ricardo é a última grande personagem do Público». E, reforçando a ideia de uma herança que extravasa o traço ou a estrutura, afirmou: «Tento respeitar o trabalho do Sam fazendo o que ele fazia, ou seja, não fazendo coisas grosseiras e fazendo coisas pensadas, com alguma reflexão. Não é preciso sermos os primeiros a dizer algo sobre as coisas, é mais importante pensarmos sobre essas coisas».
De seu nome Samuel Azavey Torres de Carvalho, Sam nasceu em 1924, em Lisboa. Foi artista plástico, escultor e experimentador em territórios vários, mas foi com o cartoon que se tornou companhia quotidiana de milhares de leitores de jornais, esse suporte que hoje parece condenado, mas que marcou a nossa vida comum até há poucos anos. Para lá dos jornais, muitos dos cartoons de Sam tiveram segunda vida em livros, hoje difíceis de encontrar nas livrarias, como se confirma pelos vários exemplares que integram esta exposição. Foi num desses livros, uma edição da Estampa, que Nuno Saraiva, então uma criança, conheceu a mais icónica das personagens do cartoonista: «O Guarda Ricardo vivia em minha casa. Lembro-me de um livro de capa verde tinha o Guarda Ricardo com uma série de cacetetes. Adorava aquilo, mesmo que não o compreendesse muito bem. Lia todos os cartoons, mas não compreendia metade deles. Mais tarde, já adolescente ou jovem adulto, com os gags do Mário Viegas, começava a sentir-me mesmo estúpido, até que fui salvo pelo meu pai, que me disse que às vezes também não compreendia, e não fazia mal.»
Na televisão portuguesa, em 1989, Sam realizou uma série de pequenos filmes, os Filmezinhos do SAM, protagonizados por Mário Viegas e Vítor Norte. Era a esses filmes transmitidos pela RTP, e alguns deles presentes nesta exposição, que se referia Nuno Saraiva na sua intervenção, e voltar a vê-los passados mais de trinta anos só reforça o fascínio que o absurdo nosso de cada dia pode conter. Não se trata de perceber, mas de nos deixarmos submergir. A compreensão pode vir depois e talvez se resuma à constatação da permanência desse absurdo no nosso quotidiano. Se pudermos rir dele, já ganhámos metade da batalha.
O imenso espólio de Sam
A exposição que agora pode ver-se resulta de uma parceria entre a família de Sam, que disponibilizou as obras do artista, e o Museu Bordalo Pinheiro, que decidiu assinalar o centenário de Sam, coincidente com os 50 anos da Revolução dos Cravos. A Tiago Guerreiro, curador desta exposição, coube a navegação pela extensa obra do autor até encontrar o modo certo de a expor: «Sam fez cerca de seis mil cartoons. Desses, a família do autor enviou-nos cerca de 700 e foi a partir deles que escolhemos, muitos deles sem sabermos onde foram publicados. Primeiro vi as imagens todas, depois voltei a elas para perceber o que estava ali a acontecer e para tentar dar uma ordem às coisas. Os cartoons do 25 de Abril foram uma escolha óbvia, até porque estamos no ano em que se comemoram os 50 anos. Depois, pensei que podia dar uma ordem cronológica às peças, mas pareceu-me fazer mais sentido identificar algumas áreas e temas que consegui identificar no seu trabalho como cartoonista, umas coisas mais ligadas ao comentário da actualidade, ao cartoon político, e depois outras que são coisas que não têm necessariamente a ver com acontecimentos políticos, mas sim com a nossa vida, o quotidiano, os nossos pensamentos, e decidi distinguir um pouco as duas coisas.»
Tendo em conta a extensão temporal abarcada pela obra e a quantidade de peças disponíveis, Tiago Guerreiro decidiu que seria acertado fazer esta exposição em duas partes. Assim, até ao dia 24 de Março, pode ver-se a primeira parte, inaugurando dois dias depois uma segunda parte com uma série de cartoons ainda não expostos, desta vez desenhos originais (os que estão actualmente em exibição são digitalizações). Essa segunda parte estará aberta ao público até 19 de Maio.
O passado a olhar para o presente
À entrada da Sala Paródia, que acolhe a exposição, um enorme nariz em bronze, uma escultura intitulada “Auto-retrato”, jaz ao pé de um retrato fotográfico do artista. É na fotografia que vemos o rosto completo de Sam, mas é na escultura do nariz (representação do seu, assume-se) que se inicia o caminho pela retórica humorística do autor, umas vezes focada num determinado pormenor do quotidiano, da actualidade ou de uma personagem, outras abrindo o foco para uma generalização, em todas assumindo o absurdo como uma das linhas que sustentam a existência humana e o seu inexorável gregarismo.
Seguem-se os primeiros cartoons, relativos ao 25 de Abril de 1974. O que mudou foi muito, já o sabemos, e nas obras expostas Sam fixa-se nos costumes, nas leis que regulavam relacionamentos e impunham o poder masculino (como a lei do divórcio) e na efusiva sensação de festa colectivamente partilhada. Não esquece, no entanto, a incógnita quanto ao futuro que virá depois da festa, como bem se nota no cartoon em que o Guarda Ricardo é advertido sobre possíveis limitações a essa liberdade com direito a dia para efeméride. Afastando as nuvens carregadas de tal pensamento, ficamos com a fotografia intervencionada por Sam, onde um grupo de damas e cavalheiros vindos de um tempo onde ainda nem se imaginava o fascismo, quanto mais a sua derrocada, se reuniam em torno de um piano, imagem que o cartoonista transformou em celebração do 25 de Abril, transformando a inevitável valsa que esperaríamos escutar na “Grândola, Vila Morena”.
Nas outras vitrines arrumam-se mais cartoons, uma pequena amostra da imensa herança que Sam deixou espalhada por vários jornais, entre eles o Diário de Notícias, o Expresso ou A Capital. Percorrer estas peças é um exercício de indagação e compreensão histórica, convocando os acontecimentos que embalavam os dias em que cada cartoon foi criado e publicado, mas é igualmente um exercício onde o presente se revela em pequenos detalhes, trocadilhos e referências. A intemporalidade não é coisa que associemos à imprensa, cujas páginas tendem a perder relevância poucos dias (horas?) depois da sua impressão, mas do mesmo modo que algumas reportagens e outros textos antigos, lidos hoje, revelam enormes semelhanças com o nosso presente comum, também alguns cartoons têm essa capacidade de projecção no tempo. Os cartoons de Sam são pródigos nisso, quer quando referem os problemas da habitação, a precariedade do jornalismo ou a lentidão da burocracia nos serviços estatais, quer quando despertam reflexões que nunca tiveram data marcada.
A actualidade de boa parte dos cartoons expostos, se exceptuarmos aqueles que remetem sem sombra de dúvida para acontecimentos muito concretos associados ao 25 de Abril (como o cartoon onde se fala do direito ao divórcio, por exemplo), não deixa de surpreender. Para Tiago Guerreiro, essa actualidade tem mais a ver com a nossa realidade colectiva do que com o traço de Sam: «É extraordinário, não do ponto de vista artístico, mas do ponto de vista do que é a nossa sociedade. Percebemos que 30, 40 anos depois, as coisas repetem-se. E encontramos isso noutros cartoonistas, também.»
Uma das vitrines desta exposição é dedicada ao Guarda Ricardo, personagem que ganhou vida nas páginas do Notícias da Amadora, em 1971, e que migrou entretanto para o Público, onde teve morada certa até à morte do seu criador, em 1993. O Guarda Ricardo foi o comentário certeiro, a síntese implacável e a semente de questionamentos vários que acompanhou leitores durante muito tempo. Tempo suficiente para integrar aquilo a que poderíamos chamar um debate comum, no tempo em que os jornais cumpriam esse papel.
Para além do Guarda Ricardo, outras duas personagens criadas por Sam ganharam vida fora das páginas onde se publicaram e merecem destaque nesta mostra. Uma delas é Heloísa, figura de uma tremenda ingenuidade onde não é difícil vermos espelhada a nossa proverbial capacidade colectiva de acreditarmos que agora é que tudo vai mudar. A outra é Marguerite, uma mulher com seios elásticos e absolutamente inverosímeis, figura que permite a Sam explorar o absurdo a partir daquela fixação nas glândulas mamárias que nos faz rir de uma certa atitude masculina.
A fechar a exposição, uma fotografia a preto e branco que parece guardar muitas histórias. Registada pelo fotógrafo Nuno Calvet, a imagem mostra um Sam desenhando o seu Guarda Ricardo numa parede, sob o olhar atento de dois agentes da autoridade. Não sabemos se foi um flagrante delito ou um desenho a pedido, nem sequer se se tratou de uma encenação, mas talvez o facto de a imagem permitir todas essas leituras seja um dos seus motivos de fascínio. É essa pluralidade de leituras que atravessa o trabalho de Sam. Não há riso boçal nem pensamento simples a estruturar estes traços e os textos que os integram, o que há é um pensamento, complexo, por vezes, marcado pela dúvida, por novas perguntas e por uma seriedade que está sempre na origem de um humor inteligente. É para rir, claro, essa coisa tão séria que nos permite filtrar o mundo.