Descolonizar, ainda
A propósito da entrega do Prémio Camões a Paulina Chiziane, um artigo para reflectir sobre algumas heranças nefastas do colonialismo.
A escritora moçambicana Paulina Chiziane esteve recentemente em Lisboa para receber o Prémio Camões de 2021. Na revista Buala, a activista angolana Leopoldina Fekayamãle escreve sobre essa presença, começando por reflectir sobre os mecanismos de legitimação do próprio Prémio Camões:
«O prémio foi atribuído pela primeira vez a uma mulher negra. Se pararmos um pouco e observarmos a lista de pessoas que ganharam o Prémio Camões desde que foi criado em 1988, reparamos que foi atribuído apenas 6 vezes a mulheres, uma única vez a uma mulher negra, sendo que todos os outros nomes da lista são de homens e brancos. O que diz isso sobre hierarquias, racismo e colonialidade? Será o Prémio Camões também um perpetuador ou reprodutor da lógica de relações coloniais entre saberes, modos de vida e visões de mundo no nosso tempo? O que nos diz o Prémio Camões sobre as narrativas que importam, as vozes que imperam e quem ocupa o lugar de centro? E o que nos diz o Prémio Camões sobre ser um dos porta-vozes do patriarcado?»
A propósito da imposição colonial que relegou as línguas de Moçambique para um estatuto de inferioridade, experiência referida por Paulina Chiziane no discurso de agradecimento, quando falou na necessidade de descolonizar a língua portuguesa, a autora do texto partilha a sua vivência desse mesmo aspecto em Angola, confirmando que essa forma de violência foi prática comum em todos os territórios ocupados por Portugal: «Eu ouvia Chiziane falando sobre a realidade de Moçambique e pensava em Angola, nas feridas abertas deixadas pelo processo brutal que foi o colonialismo, sendo uma das mais doloridas precisamente aquela ligada ao uso das nossas línguas nacionais. Cresci num país independente onde os meus pais ainda carregavam as marcas de terem sido proibidos de se comunicar em umbundo (a língua materna deles). (…) Foi-lhes ensinado que não era civilizado falar em umbundo: “uma pessoa que estudou ou que é civilizada não pode mais falar essas nossas línguas, é preciso falar o português”, era a frase que o meu pai repetia quando me contava sobre as proibições do seu tempo. Tal como o meu pai e a minha mãe, os meus tios e tias, os seus amigos, e toda a sua geração nascida e criada antes das Independências, foram nalgum momento excluídos, humilhados e segregados quando não falavam o português do modo como lhes diziam que deveriam.»
Várias décadas depois das independências dos países africanos anteriormente colonizados, esta é uma das muitas conversas pendentes, lembrando que as marcas do passado continuam aqui, todos os dias, marcando as existências e os quotidianos de muitas pessoas.