Ainda há para onde ir?
Contra a Palavra Escrita
Ian F. Svenonius
Chili Com Carne + Thisco
Tradução de Ondina Pires
A Chili Com Carne já tinha publicado uma obra de Ian F. Svenonius, o norte-americano que ainda resiste nas barricadas da contra-cultura e que vai distribuindo disparos entre a música e a escrita, sempre focado no potencial da disrupção como mecanismo capaz de nos abanar, pelo menos um pouco, e permitir vislumbrar outras formas de existir em comunidade. Censura, Já! era uma diatribe sobre liberdade de expressão, consumo e modos de controlo de multidões, equilibrando precariamente alguns delírios histórico-comparativos com uma reflexão brutalmente lúcida sobre o mundo contemporâneo. Contra a Palavra Escrita segue o rumo de Censura, Já!, mantendo um sarcasmo impiedoso ao longo de todo o livro, sem com isso perder pertinência.
É na Parte I que se encontra o ensaio que dá título ao livro. «Contra a palavra escrita» parte de uma daquelas teses em que Svenonius é pródigo, uma assunção polémica carregada de ironia onde, ao longo da argumentação do autor, vamos reconhecendo que não é na interpretação literal que está o miolo do pensamento, mesmo que essa interpretação esteja sempre a acotovelar-nos à medida que a leitura avança.
Depois de malhar no Iluminismo e na sua defesa da alfabetização universal, Svenonius escreve: «Enquanto o idiota semialfabetizado ainda pode, possivelmente, abrigar uma suspeita saudável sobre a mais recente prestidigitação da classe dominante, já na arena da academia o futuro doutorado pode ser levado a acreditar em qualquer coisa.» E, mais adiante: «Mesmo este pedaço de escrita que está a ler agora tenta animá-lo, afectar os seus pensamentos e acções. Mas… este… este pedaço de escrita é diferente de todo o resto. Ele é o texto mais importante que você já leu, está acima de Shakespeare, Milton e Joyce. (…) Porque estas palavras não foram projectadas para perpetuar a leitura de palavras, mas sim para acabar com a leitura de palavras, para, daqui em diante, inspirar o leitor a nunca mais ler outro texto.» Isto diz o autor que vai citando autores e livros ao longo de várias páginas… Não é uma diatribe, pura e simples, mas também não é para levar à letra (ainda que Svenonius, se questionado sobre o assunto, pudesse afirmar o contrário). Essa é a verdadeira inquietação produzida pela escrita deste autor, um equilíbrio precário e sempre à beira do abismo que nos faz duvidar tanto da justeza do ponto de partida argumentativo como da reflexão a que somos conduzidos ao longo do texto. E ainda assim, vislumbra-se um fio de razão nessa reflexão, um espelho que nos devolve o desconcerto do mundo, das fake news aos discursos que transformam em opinião aquilo que é cientificamente factual.
O ensaio prossegue deambulando pelos territórios do turismo de massas, da música de consumo rápido, das redes sociais. O capítulo sobre o turismo é uma pérola, simultaneamente triste e clarividente, que nos obriga a olhar para nós e não apenas para os outros a que chamamos turistas quando se passeiam à porta de nossa casa. Essa é uma das artimanhas de Svenonius, colocar um espelho em quase tudo o que escreve, assumindo que mesmo ele não está fora do alcance desse reflexo.
Nas partes seguintes de Contra a Palavra Escrita, Svenonius percorre outros campos, sem nunca se afastar desse registo desassossegado que nos obriga a olhar para o mundo e constatar a sua desarrumação. O corpo e as suas encenações contemporâneas, a inteligência artificial e a ilusão de um novo ser humano, a erotização disfarçada de liberdade e feita indústria de domínio moral, os muitos mecanismos de controle de estados e grandes corporações, tudo cabe neste caldeirão incómodo onde vivemos, aqui no Norte global e supostamente desenvolvido. Não é bonito, nem bom de ler, e mesmo quando se reconhece a verve iconoclasta e alguma encenação na rebeldia, ou quando certas comparações se apresentam a seco, sem sarcasmo e portanto com pouco sentido, Contra a Palavra Escrita é um livro do desassossego sem existencialismo ou elaboração poética: tudo no osso, tudo directo à jugular.
Em nenhum momento o autor se apresenta como alguém que traz verdades, pelo menos não no sentido das respostas cabais que tantos profetas da certeza oferecem. Aqui, não há certezas sobre rumos futuros, porque na verdade não há grande aceitação de uma ideia de futuro, postura que muito provavelmente tem raízes numa certa ética punk que parece guiar o autor. Apesar disso, o facto de propor uma reflexão, mesmo querendo partir tudo pelo caminho, é já um futuro, ou uma vontade expressa de futuro. Aqui não há niilismos para entreter. Há ironia em doses cavalares, sim, mas o seu uso não é um mero artifício, antes um modo de nos colocar o olhar no centro de um horror, de vários horrores que nos estruturam os dias, disfarçados de quotidiano e de normalidade, que preferimos não ver.