Quem diz é quem é
Identidade e género têm vindo a ganhar uma crescente importância no debate social. A edição de álbuns ilustrados sobre o tema começa a refletir a tendência de liberdade e direito à consciência e afirmação identitária. No último semestre três títulos vieram trazer novos contributos para uma leitura plural.
Discriminação
Oliver Button é uma menina tem data de edição original em 1979, nos EUA. Chega agora a Portugal pela mão da Kalandraka, que há muito vem colmatando diversas lacunas na área do álbum ilustrado (Maurice Sendak, Leo Lionni, Eric Carle…). Narra a história de um rapaz cujos gostos e comportamentos não se enquadravam no estereótipo masculino: não gostava de desportos, preferia ler, desenhar, e adorava dançar. Inicialmente, o pai do menino tentava combater as suas brincadeiras convencendo-o a jogar com outros rapazes. A mãe, percebendo que Oliver nunca praticaria um desporto coletivo mas, ao invés, se entusiasma com a dança, inscreve-o numa turma de dança e sapateado. Daqui para a frente o leitor assiste à discriminação dos outros rapazes, que lhe chamam menina ao mesmo tempo que Oliver passeia os seus sapatos de dança ao ombro, numa atitude de afirmação. O mais interessante na progressão da acção é assistir à mudança silenciosa dos pais, que nunca o discriminam frontalmente mas claramente não se sentem confortáveis com as suas escolhas. Todavia, apoiam as aulas de dança e orgulham-se verdadeiramente da sua exibição do concurso de talentos.
O apoio dos mais próximos, bem como o das raparigas da escola, e o sucesso da sua prestação no dito concurso, que não vence, são o ponto de viragem para Oliver garantir o respeito dos pares. A esperança e a mensagem positiva não deixam de por o dedo na ferida: as ilustrações acrescentam emoções ao texto, discreto nos juízos. A sensação de perseguição pelos comentários sussurrados ou o medo e a angústia da impotência perante uma roda de rapazes mais velhos narram se nas ilustrações de contornos carregados e enchem as páginas de força. A contrastar com as expressões de Oliver neste ambiente hostil, o brilho do seu largo sorriso quando dança, quer na aula quer quando treina para o concurso, numa sequência de vinhetas que reiteram a sua determinação. O equilibrio formal do álbum fá-lo ultrapassar o tempo em que nasceu e que ali se reconhece sobretudo pelo vestuário, pelas molduras das ilustrações e, eventualmente, pela paleta de cores. Tudo o resto é atual mesmo que com outra roupagem discursiva: pais, colegas, agressão verbal. Haverá mais rapazes em aulas de dança, haverá menos rapazes preconceituosos, haverá mais famílias menos formatadas para o estereótipo de género?
À data da sua edição original, o livro foi alvo de polémica e censura, e o seu autor só muitos anos mais tarde declarou que a narrativa tinha origem na sua própria biografia. Embora Tomie dePaola tenha ficado conhecido e reconhecido por outro livro, Strega Nona (1975), o primeiro de uma série que tem como protagonista uma simpática avó com poderes mágicos e uma secreta receita de pasta italiana, Oliver Button é uma menina foi o primeiro título destinado ao público infantil a aproximar- se do termo gay, segundo o New York Times, no obituário dedicado ao escritor a 31 de Março. No original, o título é mais forte que a tradução portuguesa: Oliver Button is a Sissy pode ser traduzido, numa gíria menos polida como Oliver Button é um maricas. Sissy tem maior amplitude do que menina e o efeito da ofensa pode ser mais grave. A tradução não só aligeira uma possível leitura mais violenta como provavelmente também não encontra outro termo suficientemente amplo para designar o contexto de agressão a que o protagonista estava sujeito. Por outro lado, o título português levanta uma ambiguidade que não era de todo tratada ou assumida, a do género enquanto identidade e não apenas enquanto orientação sexual. Assim, a escolha editorial para a tradução pode retirar alguma força à expressão original mas coloca novas questões ao leitor. Tudo nesta narrativa assenta no comportamento que se determinou que os meninos deveriam ter e que os definiria como indivíduos do género masculino. Oliver Button era vítima de preconceito porque não era forte fisicamente, era inábil para o desporto e gostava de dançar.
Elogio
Outra perspetiva completamente diferente é-nos dada por O Jaime é uma sereia (Jessica Love, Fábula). Distinguido com o Bologna Ragazzi Award na categoria de Opera Prima (primeira obra) em 2019, este álbum acompanha Jaime numa ida à piscina com a avó. À saída cruzam-se, num transporte público, com três pessoas vestidas de sereias. Desde logo o menino dá asas à imaginação e logo se transforma ele também. Chegados a casa, a avó desaparece rumo ao banho e Jaime tem ao seu dispor o tempo e os meios para operar realmente a transformação. A reacção da avó é surpreendente e poderosa, reiterada pelo suspense que o passar da página provoca. Mas confirma-se a naturalidade da aceitação quando é a própria que decide levar o menino ao desfile. Aqui nunca se usa nenhum termo programático. Sereia é suficiente. Senão vejamos: é factual que existe um desfile em Coney Island desde 1983 com o nome Mermaid Parade. Este desfile conta com milhares de participantes que, no sábado mais próximo do solestício de Verão, desfilam pelas ruas de Coney Island com trajes inspirados no mar e na mitologia que lhe está associada, da qual se destacam as sereias. Não sendo um festival com uma intenção política não lhe está associada nenhuma manifestação em defesa da identidade de género ou nenhum destaque ao travestismo. Efetivamente, a ilustração não atribui às sereias que se cruzam com Jaime corpos masculinos, embora num ou noutro ângulo o leitor esforçado possa ter dúvidas. Todavia, a questão não é a do modelo e sim a do desejo próprio. Pouco importa se são mulheres quem desfila de sereias ou se também há homens a fazê-lo.
O importante é que Jaime queria ser uma sereia, vestiu-se como uma e a avó corroborou o desejo do neto sem hesitações. Porque não pode ser ele uma sereia e sair à rua de braço dado com a anciã com os lábios pintados, de colar ao peito e com uma longa saia com cauda? Porque não pode a criança fruir desse desejo e encontrar outros e outras que lhe servem de modelo, ou que partilham o mesmo desejo? Passo a passo a história leva o leitor por um caminho em que se confronta com o seu próprio juízo, da surpresa à aceitação, passando pelo elogio da avó. A parca informação textual acerca desta relação familiar ou de qualquer rotina leva a que o leitor discorra sobre os afetos e o conhecimento que a avó tem do neto através da ilustração. É na forma dedicada como a avó olha para (pelo) neto, seja ela retratada em que perspectiva for (de lado, de frente ou de costas) que reside o segredo daquela naturalidade. Outro elemento simbólico é o do sonho do menino quando vê as sereias no metro: depois da sua transformação em sereia e da explosão de cor e formas, um grande peixe azul vem ter consigo e oferece-lhe um colar. A cena repetir-se-á quando a avó, trajando um vestido com o mesmo padrão azul, dá a Jaime um colar para completar a indumentária, perante o espanto do rapaz. Jaime é uma sereia não é uma denúncia, como Oliver Button é uma menina. É um elogio do amor, do respeito e da liberdade, um elogio à criança que sonha e age, um elogio à avó que compreende e reage, e um elogio ao lugar onde sempre pertencemos, seja este onde for. Jaime não só pode vestir a pele que queria como pode ver tantas outras pessoas a vestir a mesmíssima pele. E esse detalhe tem uma relevância determinante para a identidade de cada um e uma.
Discorrer sobre o assunto
Como se explica a crianças (e não só) o que é identidade de género? Como se explica que aparência e identidade podem não corresponder aos modelos que nos habituámos a considerar? Um álbum minimalista, de título mais abstracto do que o conteúdo que se oferece ao leitor vai dando pistas a perguntas que também faz. Joana Estrela, a autora de Menino, Menina (Planeta Tangerina) tem vindo a dedicar-se ao tema, sendo o seu livro Os Vestidos do Tiago um título de referência apesar de circular fora das cadeias livreiras, em livrarias independentes e feiras gráficas. Agora, tudo se centra em desmontar os limites e as fronteiras de género. A cor associada a rapazes e raparigas muda de referente para as bolas de um gelado numa taça, ladeado por duas crianças igualmente rosadas. Já o bebé laranja deitado na cama de grades bem pode ser menino ou menina. Tudo é explorado, desde o adjetivo feminino e masculino ao adjetivo neutro terminando em a, com vista a demonstrar com exemplos o contrário do que herdamos como definido, correto e normal. Depois de passar pelas cores, por tamanhos de cabelo e pela falsa dicotomia futebol e dança (interessante o paralelo com a dança que Oliver Button adorava em 1979), chega o momento de se colocar ao leitor uma primeira pergunta ontológica: «Precisas de saber se é rapariga ou rapaz?» para logo em seguida se responder abrindo caminho noutra direção: «Só olhando nem sempre és capaz.» Há nesta chamada de atenção algo de precioso: desvia-nos da resposta afirmativa ou negativa que é difícil de dar. Precisamos ou não? Sempre? Nunca? A ilustração sustenta as questões e as respostas com exemplos e estes exemplos clarificam posições. Na página em que se afirma que nem sempre é possível reconhecer o género biológico, estamos na praia e ao longe alguém faz surf. Não é possível perceber. Entramos num novo passo do livro: o de que a identidade de género nem sempre se reconhece na aparência física da pessoa. Avançam-se possibilidades híbridas que apelam à liberdade de cada um poder ser masculino ou feminino. Finalmente, chega-se ao terceiro ponto deste programa: «E se não é nem uma coisa nem outra?/ A resposta não está debaixo da roupa.» A recta final afunila e o texto volta a dirigir-se ao leitor para lhe dar a liberdade e o direito de escolher, seja o que for, de entre uma multiplicidade cruzada de identidades.
O tema não é simples, bem pelo contrário, e Joana Estrela condulo com se fosse, entre a rima do texto que alimenta uma cadência quase naïf e as ilustrações a lápis de cera que também simplificam e conferem leveza aos exemplos e à sua relação com o verso a que correspondem. O tom dialógico assume igual relevância na aproximação ao leitor pelo que o álbum cumpre o objetivo de desmistificar pela simplicidade. «Não é aliás à toa que este é o último dos três títulos a ser apresentado e explorado aqui. Através de Menino, Menina é mais fácil voltar a Oliver e Jaime, pelo menos mais claro. Claro que não é necessário catalogar cada uma das experiências, cada um dos perfis, como se a uma qualquer categoria pertencessem. Ainda, regressar aos dois primeiros álbuns faz-nos reconhecer nos seus finais as palavras providenciais de Joana Estrela: «Só tu te conheces melhor que ninguém.//… e segues o caminho que mais te convém.» Assim foi.