Quem tem medo de JP Cuenca?
Infelizmente, como diria Barthes, «a linguagem humana é sem exterior: um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela singularidade mística…» São as frases, os versos, os textos, as parábolas atreladas a metáforas, metonímias, personificações ou até paródias que dotam a linguagem de significações novas, às vezes poéticas outras espirituais embora todas permitam ao indivíduo ultrapassar o limite do sentido literal. É a linguagem figurada que cruza a fronteira do denotativo.
Imaginem São João dizendo, «no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus». Como sabemos, ninguém pode ser um verbo, muito menos um verbo que se pretende um substantivo, mais ainda, em «nome próprio». É a metáfora que nos permite compreender que não estamos a falar apenas de uma unidade de significação gramatical mas antes de Jesus, e que Jesus é Deus.
No exercício da sua liberdade individual, religiosa e de culto, aqueles que professam a fé bíblica baseiam-na no seu livro sagrado que consagra narrativas figurativas de beleza, de crueldade, de vida, de morte e até de questionamento quantos os critérios da justiça divina, como no caso do Livro de Jó. Não é possível retirar a literatura da Bíblia tal como é possível retirar a metáfora da literatura.
Por isso não é crível que um líder religioso não compreenda um texto no sentido figurado. Tal como são capazes de os entender, do mesmo modo compreendem que o autor JP Cuenca não pretendia que nenhum pastor da Igreja Universal do Reino de Deus fosse literalmente enforcado quando publicou na sua conta do Twitter «o brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal».
A construção é uma subversão do sentido estrito e permite extrapolar uma primeira interpretação, levando-nos para outras camadas de significação. Originalmente a frase não é do autor, ele apropriou-se de uma frase de Jean Meslier, do século XVIII, parodiada inúmeras vezes ao longo da história — «O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre» — para exercer o seu direito de indignação e de liberdade de expressão diante da possibilidade de promulgação de uma lei que favorece instituições religiosas com um perdão fiscal, com a anulação das dívidas tributárias das igrejas.
Ao parafrasear Meslier, a publicação foi o ponto de partida para uma perseguição levada a cabo por mais de cento e vinte pastores da Igreja Universal do Reino de Deus que exigem indemnizações por danos morais, o valor total ultrapassa os dois milhões de reais. A ação aparenta ser concertada, e é dispersa por pequenas localidades do Brasil e por diferentes líderes religiosos de forma a dificultar a defesa plena, podendo acarretar enormes prejuízos financeiros ao autor. Os reclamantes declaram terem sido atacados na sua fé e que o discurso do autor incita o ódio e à violência, negando a literariedade do texto.
O pragmatismo nefasto de uma religiosidade enclausurada em púlpitos que busca fundamentos bíblicos para justificar o que é da sua conveniência não esvazia de significação o aspecto figurativo, literário do texto. A reação é, em boa medida, coerente com o comportamento que finge acreditar no sentido literal de um texto que não é da sua conveniência.
Nesta perspectiva, «a fé move montanhas» — não formalmente, convém clarificar — mas ocupa esquinas; salas de estar das casas; aluga lojas; constrói templos; atravessa oceanos; e envia missionários para outros países; adquire mansões, carros de luxo e jóias; influencia a política, apesar da Constituição proibir a «dependência ou aliança» de autoridades do Estado com os líderes religiosos; tenta esquemas legais para evitar o pagamento de impostos; intimida e persegue de forma pérfida quem critica práticas danosas dos que também fingem compreender o significado da própria fé . «E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.»