Saramaguiana
por Dulce Maria Cardoso 26 Outubro 2022
Gracinda Mau-Tempo © Miguel Januário
Um retrato possível de Gracinda Mau-Tempo, por Dulce Maria Cardoso
A escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso e o artista Miguel Januário são dois dos criadores que participam do projeto Mulheres Saramaguianas*. A revista Blimunda publica em exclusivo o seu trabalho, um retrato em texto e imagem da personagem Gracinda Mau-Tempo, do romance Levantado do Chão.

Trazem uma mulher

Gracinda Mau-Tempo é filha da corajosa e confiante Faustina Gonçalves, e de João Mau-Tempo, fruto da triste Sara da Conceição e do errante sapateiro bêbedo, Domingos Mau-Tempo.

Ninguém devia chegar à vida sem lugar a que pudesse chamar seu, mas Monte Lavre, o latifúndio, não permite essas veleidades aos filhos dos que nele arrancam o seu parco sustento. As crianças nascem para trabalhar, são gado inteiro ou rachado, saem ou tiram-nas das barrigas das mães, põem-nas a crescer de qualquer maneira. Se o que mais há na terra é paisagem, em Monte Lavre, o que mais há é violência. Não se é pobre sem muito penar, nem rico sem muito usurpar.

Tão pouco se é mulher sem viver calada e sofrida. Muito se contou e conta de homens. Das mulheres fala-se sempre de passagem. Vergadas ao peso da carga ou da barriga, as mulheres condenam-se ao coro da tragédia das vidas dos filhos, maridos, irmãos.

E o tempo foi passando, assassinaram o rei, falhou a primeira república, Monte Lavre continua igual. Sara da Conceição morreu sozinha, Faustina Gonçalves caminha para velha, Gracinda Mau-Tempo fez dezassete anos e anda de namoro com Manuel Espada que tem a fama de ser o primeiro grevista de Monte Lavre.

Tal como as mulheres que a antecederam, Gracinda Mau-Tempo não foi à escola, mas já sabe ler e escrever quando se casa. Ensinou-a o próprio noivo. E ela aprendeu, que, afinal de contas, não é assim tão grande a diferença entre homem e mulher. A não ser no salário.

Filha e mulher de grevistas, Gracinda paga o seu enxoval e escolhe o dia do seu casamento. Parece pouco, mas tudo depende do que se compara. A novidade maior na sua vida está por acontecer e não se trata de gravidez ou outro assunto de mulheres, mas da ida à manifestação de Montemor. Isto não é coisa para mulheres, diz-lhe Manuel Espada, antes de concordar em levá-la.

Ao chegarem a Montemor, entre os de outras paragens corre a notícia, Vieram os de Monte Lavre, não são muitos, mas trazem uma mulher. Já não há quem segure as mulheres.

No latifúndio, os dias seguem iguais e nenhum se parece.

Abril há-de chegar e com ele outro futuro.

* O álbum “Mulheres Saramaguianas” é uma das iniciativas que integram o programa do Centenário de José Saramago. Para este projeto, seis artistas portugueses de várias gerações e territórios artísticos (Ana Romãozinho, Graça Morais, Joana Villaverde, José de Guimarães, Manuel João Vieira e Miguel Januário) foram convidados para retratarem seis personagens femininas criadas por José Saramago: Blimunda, Gracinda Mau-Tempo, Joana Carda, Maria Sara, a Morte e a Mulher do Médico. Em seguida, seis escritoras de língua portuguesa (Adriana Lisboa, Ana Luísa Amaral, Ana Margarida de Carvalho, Djaimilia Pereira de Almeida, Dulce Maria Cardoso e Lídia Jorge) aprofundaram, com os seus textos, a reinvenção artística do rosto e do corpo das personagens. Até ao final de dezembro está patente no auditório da Casa dos Bicos – Fundação José Saramago, em Lisboa, uma exposição com os trabalhos artísticos e os textos que compõem o álbum.