Casa da Andrea Andréa Zamorano 25 Outubro 2022
DR

A mulher dividida

Texto escrito a partir da obra “O Homem Duplicado” de José Saramago, para a antologia de contos “Todos os Saramagos”, Páginas Editora.

Tertuliana, lia-se no crachá da moça que trabalhava no caixa do supermercado. Registrava os litros de leite, os pacotes de bolachas, o arroz e a carne com desenvoltura e rapidez. Ainda assim, o seu desconforto era flagrante. Quando as costas lhe doíam além do habitual, repetia para si, de certeza que este cansaço extraordinário é do peso do meu nome. Levantava-se, regulava a altura do banco, os ‘pis’ dos códigos de barra voltavam a apitar contra os feixes vermelhos de luz que complementavam o sistema de leitura dos preços. Dinheiro ou cartão? Quem teria coragem de nomear uma criança acabadinha de nascer de maneira tão anacrônica, matusalênica mesmo?

O seu pai tivera.

A peregrina ideia do progenitor ficaria para sempre com Tertuliana, embora esse seu pai não tivesse estado pelo lar da família mais do que um par de semanas depois de a sua mãe ter dado à luz. Antecipando a sua impermanência, o pai decidiu prosaicamente condená-la à lembrança diária da sua existência, e a menina recebeu o nome de uma personagem que, por mero acaso, ele viu de relance num filme exibido na televisão velha do bar que frequentava. Tratava-se de Tertuliano Máximo Afonso, um homenzinho desinteressante e deprimido por quem Tertuliana nutria uma certa pena mas invejava a sorte.

Que jeito daria me multiplicar ao invés de me dividir.

Ouviu o supervisor de turno ecoando todas as sílabas do seu nome, estendendo o final para cima, inventando uma nova tônica. O nome de outro tempo se espraiou retumbante pela linha de caixas, Tertuliana suspirou fundo, fechou os olhos por breves segundos, depois sorriu por obrigação para o cliente que nem reparou no seu minúsculo achaque. Preferia que a tratassem por ‘T’, o supervisor sabia. Uma letra apenas bastava para significá-la inteira.

Voltou então a sentar-se agora na condução que a levaria para a casa. Casa de onde nem deveria ter saído pela manhã no momento em que as dores a paralisaram, não fosse o sentido espartano de responsabilidade que a mãe lhe incutiu, não punha os pés, ai não punha não, naquele emprego miserável. Nem um desconto fazem para os trabalhadores, tanta comida, às vezes a expirar a validade, dez por cento que fosse ajudaria. E você julga que essa gente nos daria qualquer coisa… ó colega, deixe de ilusões. As ilusões têm você, eu tenho meninos que comem todos os dias.

Chegou em casa tarde. O ônibus atrasou, ela perdeu a baldeação. As crianças esperavam a mãe regressar para lhes preparar o jantar. Correram até ao portão ao avistarem-na carregada com os sacos. Eram pequenos, todavia esforçados. O maiorzinho cuidava do menor. E assim iam se governando. Ela afagou e beijou a cabeça dos dois.

Mal entrou em casa, dirigiu-se para a cozinha.

Abriu um pão ao meio, barrou com margarina e deu um lado para cada menino ir enganando a fome enquanto ela, antes de começar o jantar, colocava uma máquina de roupa para lavar. Tertuliana logo se deu conta que teria que se dividir. Ela evitava, não o fazia de ânimo leve. A fadiga impunha-se. Então encostou-se num canto da cozinha, curvou o corpo, como quem tem uma dor aguda na boca do estômago, encolheu-se um pouco mais e outra Tertuliana igualzinha a ela apareceu ao seu lado. Media metade do seu tamanho. Foi direto para a máquina de lavar e começou a separar as roupas de cor das roupas claras em dois montes.

Era evidente que se dividir assim daquela maneira cobrava o seu preço. Aliás, poucas coisas nesta vida não o farão. Só o riso de uma criança de barriga cheia poderia valer tanto sacrifício. Note-se que para além do nome, o pai de Tertuliana lhe deixou a sina ruim de ser abandonada. Também o pai dos seus filhos desapareceu mal o menino mais novo nasceu. Foi assim que ela, que em criança sonhou aparecer na televisão e dar as notícias no telejornal das oito da noite, acabou com a cara atirada para um crachá de plástico. Houvesse quem se desse o trabalho de olhar.

Faltava preparar o jantar dos miúdos enquanto a máquina lavava. Contudo, com metade do tamanho, Tertuliana teve que buscar um banquinho para alcançar o fogão. Foi mexendo nas suas panelas até o menino mais velho interrompê-la com o caderno nas mãos, fazendo perguntas para as quais Tertuliana teria que puxar pela memória. Lembrança que desconhecia saber se habitava ou não a sua história, mas como não queria que nenhum dos seus filhos ficasse com ínfima réstia da sua desgraça, antepôs o menino a todas as prioridades.

Lá teve que se curvar uma vez adicional sobre a barriga, contrair-se, sentir dor e se dividir de novo. Ficou com metade da metade do tamanho que tinha. Pediu ao menino que pousasse o caderno e fosse buscar a escada junto à porta da entrada dos fundos. Deixou uma Tertuliana empoleirada, pela altura do quarto degrau, cuidando do lume. Foi apoiar o filho.

menino não se importava em ter uma versão compacta da mãe. Até lhe achava uma certa graça e Tertuliana fingia não ter consequências a sua ação para não preocupar o filho com as suas adversidades. Pediu que ele a agarrasse ao colo e a sentasse em cima da mesa da cozinha para poder acompanhá-lo na lição.

No entretanto, a Tertuliana da máquina de lavar já andava a varrer o quarto onde se amontoariam mais tarde para dormir. Os dois meninos ocupavam a cama de casal (sem serventia para o efeito), as Tertulianas se deitariam juntas num mesmo colchão de solteiro arrumado no chão de tijoleira, encostado à janela. Ficariam ali estiradinhas e passariam a noite sem sobressaltos. Quando pelas cinco e meia da manhã o telefone despertasse, convocando-as para o novo dia, Tertuliana seria de novo uma só. Uma única, porém, dois milímetros menor.

Quanto mais se divida, mais diminuía. Em verdade, temia o dia em que ficaria tão pequena que se cindir ao meio pouco ou nada adiantaria. Seria tão reduzida que sequer amontoando todos os móveis da casa chegaria à parte alguma. Quem me dera me multiplicar ao invés de me dividir. Tertuliana pensara em Tertuliano. Na sorte dos homens. Como sonhava ela em começar de novo, ter um segundo amor, uma carreira na televisão, nem que fosse a dar as notícias desinteressantes, ser outra sendo a mesma como Tertuliano. E os meninos? O que seria deles? O que seria dela sem eles na nova vida? Talvez por isso não se multiplicasse. Quem sabe não fosse aquela uma sina complementar, o destino de se dividir até desaparecer.

Noutro dia sofreria com essas angústias, era tempo de chegar ao trabalho a horas e mais baixa. Ninguém estranhou. Era apenas uma bizarria de Tertuliana. Onde já se viu? Aquilo só poderia ser obra de quem ostenta um nome tão afetado, corria o comentário entre os funcionários que sempre se impressionaram com as suas falas contundentes.

Foi numa dessas manhãs iguais a tantas que o supervisor olhou para Tertuliana, estava tão pequena que presumiu que não conseguisse carregar um nome tão grande. Faço-lhe a vontade, ‘T’. Agora fica avisada, quando não for mais capaz chegar ao teclado perde o emprego.