Espelho Meu Andreia Brites 24 Outubro 2022

O rapaz que voou até ao mar
Conceição Dinis Tomé 
Presença 

Sendo esta a segunda novela da autora, começa a definir-se aquilo a que alguns chamam de estilo. Tendo-se estreado com O Caderno do Avô Heinrich, original que lhe valeu o Prémio Literário Maria Rosa Colaço em 2012, Conceição Dinis Tomé continua a explorar temas traumáticos. Depois do holocausto foi a vez da migração no conto Fatma e agora a violência doméstica. 

Nesta narrativa em primeira pessoa, o leitor acompanha o jovem protagonista enquanto este relata a Nini toda a sua vida. Desde cedo se começam a levantar dois tipos de inquietações, uma relacionada com o desenrolar dos episódios e outra com os vazios que levantam perguntas sem resposta: quem é Nini?, qual era o real estado de saúde da mãe do protagonista , que idade tem agora?, passou muito tempo entre o que está a contar e o presente?, há esperança?

Aqui reside a principal tensão diegética e emocional: o leitor está sempre a fazer previsões e juízos afetivos e a ser confrontado com novas situações e informações até ao final. Apesar desta estratégia, o texto tem muitos momentos reflexivos onde abundam correspondências poéticas e associações sensoriais. Também reside na linguagem o poder de replicar e sugerir imagens e emoções fortes ao leitor.

Provavelmente, assumir que estamos perante uma narrativa violenta pode afastar os mais temerosos. Mas relatar a história de uma criança que é retirada à família, institucionalizada, entregue a uma família que a devolve não é possível sem infligir desconforto. 

Um dos elementos mais consensuais nas narrativas juvenis é a esperança, o commumente designado final feliz ou a sua suposição através de um final aberto. Não é que neste caso seja totalmente impossível essa concretização mas Conceição Tomé concede muito pouco à felicidade. Nesse sentido, talvez esta novela seja violenta, violenta nos acontecimentos mas sobretudo na sinceridade com que são narrados. Tal sinceridade, comparada com os artifícios de superficialidade de tantas estruturas que expõem lutas, mortes, ofensas, humilhações, cava um desconforto distinto. Não se permite a indiferença pelo excesso, o abandono das personagens à sua sorte, implica efetivamente o leitor. 

Há um efeito de coragem neste livro, associado à sobrevivência, aconteça o que acontecer. A voz é singular, o tema arrojado, a estética emocional e sugestiva. O rapaz que voou até ao mar é literatura e que merece ser comemorado.

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