Destaque Sara Figueiredo Costa 21 Agosto 2022
Todas as fotos © Chou Ching-Hui

As jaulas nossas de cada dia

No Museu do Oriente, em Lisboa, o fotógrafo taiwanês Chou Ching-Hui encena o espectáculo da vida quotidiana entre ecrãs, obsessões com ideais de beleza inatingíveis e uma solidão demasiado ruidosa.

As cores saturadas, a focagem precisa e os detalhes dispersos por móveis, objectos do quotidiano, comida, parecem invocar uma estética kitsch, mas a invocação desfaz-se ao primeiro olhar atento para qualquer uma das fotografias que compõem Animal Farm, do fotógrafo taiwanês Chou Ching-Hui, que agora se exibe no Museu do Oriente, em Lisboa. O universo que aqui se encena – e encenar é palavra-chave – é desconcertante, e não deixa de se socorrer daquilo a que chamamos cultura popular, com o consumo à cabeça, mas aquela que é a primeira exposição individual de Chou Ching-Hui na Europa nada deve ao jogo entre o mau gosto e a ironia que alimenta o kitsch.

Animal Farm compõem-se de nove fotografias de grande formato, às quais se associam fotografias de menor dimensão, vídeos e instalações. Cada uma dessas nove fotografias principais, chamemos-lhes assim, retrata um momento cuidadosamente encenado onde se declinam diferentes aspectos da vida contemporânea, da necessidade de permanente comunicação alimentada pelas redes sociais à projecção de imagens de perfeição associadas ao corpo. A apatia gerada pela rotina e pela omnipresença dos ecrãs, o excesso e o lixo que se vão acumulando, resultado de uma produção e um consumo que se auto-alimentam, a doença mental atravessando tudo e todos, a falsidade do mercado da arte, o envelhecimento assumido como invalidez, tudo isso atravessa as imagens encenadas de Chou Ching-Hui, convocando um desconcerto e exigindo uma reflexão, sempre a partir de um elemento comum a todas as obras: cada um dos cenários onde posam os modelos por entre uma imensidão de objectos, detalhes e adereços está instalado nas jaulas ou noutros espaços destinados à exibição dos animais de um jardim zoológico. É um cenário secundário, no que à criação cenográfica diz respeito, mas acaba por ser o principal, na medida em que esse é o ponto de partida para esta série, a ideia de que estaremos todos encerrados em jaulas, vendo-nos uns aos outros a partir de uma noção de liberdade que há muito e por muitos motivos se esfumou.

Durante três meses, Chou Ching-Hui e a sua extensa equipa instalaram-se alternadamente nos jardins zoológicos de Hsinchu e Shoushan, em Taiwan, criando os seus cenários detalhados em jaulas e outros espaços destinados ao habitat artificial dos animais que ali habitam. Antes e depois desse momento, houve muito trabalho preparatório, da angariação de fundos à preparação pormenorizada de todas as cenas, com a respectiva iluminação, os adereços, as posições dos modelos e actores. No total, o fotógrafo dedicou cinco anos da sua vida a este trabalho, depois de ter realizado outras séries fotográficas, como Frozen in Time: Images of a Leper Colony, onde explora as ideias sobre a doença de um conjunto de pessoas afectadas pela lepra, ou The Yellow Sheep River Project, que regista o quotidiano das crianças que habitam uma zona rural da China, na área de Gansu.

Dividida em três núcleos, «Consciência do Comportamento Colectivo», «Consciência da Sobrevivência» e «Consciência do Corpo», Animal Farm dialoga com o texto homónimo de George Orwell, sobretudo no que ao controlo diz respeito – aqui, não é um Big Brother, é algo mais difuso, repartido entre o lucro, os processos que atribuem poder a umas pessoas e não as outras e o controlo inter-pares que passa pelos padrões de beleza e moral, entre outros – mas convoca também a herança das fábulas, onde animais com faculdades humanas, nomeadamente a linguagem e a consciência, dissertavam sobre o mundo e as relações. E é a consciência que atravessa todas as peças desta obra, não como mera faculdade humana, mas antes como elemento dúplice, de um lado força vital e existencial, do outro, condenação eterna, como no mito de Prometeu.

Um outro elemento está presente em todas as nove imagens principais de Animal Farm, bem como no próprio espaço expositivo, em modo de instalação. É um bonsai, a árvore miniatura que fazemos crescer com a forma que mais nos agrada, com parte do tronco cingida por anéis de metal. Num filme realizado pela La Galerie Paris 1839, de Hong Kong, Chou Ching-Hui revela a origem desse bonsai restringido pelo metal. Numa das muitas entrevistas preparatórias de Animal Farm, o fotógrafo entrevistou um psicólogo e, entre as histórias que o profissional de saúde mental lhe contou, estava a de um paciente que, a meio de uma sessão de terapia, lhe disse que a árvore que estava ao seu lado estava a sofrer. O psicólogo pediu-lhe para desenvolver a ideia, talvez naquele tom que os psicólogos têm para tentar extrair material oculto de uma afirmação simples, mas o que o paciente queria dizer era exactamente isso: a árvore, um pequeno bonsai que se exibia numa mesinha do consultório, estava a sofrer, porque para uma árvore crescer como queremos que ela cresça, é preciso restringir-lhe os movimentos de crescimento, atá-la, prendê-la, orientar os ramos que aí vêm no sentido que nos parece melhor. Foi aí que surgiu a ideia deste bonsai preso por aros, elemento que atravessa todas as fotografias da série, como explica o autor neste filme:

Animal Farm é também um labirinto visual, com cada caminho a iniciar-se com uma fotografia principal, encenada numa das jaulas ou outros espaços delimitados dos jardins zoológicos de Hsinchu e Shoushan, e a abrir percursos possíveis para fotografias secundárias e vídeos curtos que se focam em personagens e detalhes dos cenários principais. Nestas imagens, estáticas ou em movimento, somos nós os animais visionados nas suas jaulas e cada peça de Animal Farm é um espelho, umas vezes deformador, outras hiper-realista e multifacetado, que nos dá a ver a nossa própria vida em sociedade – integrando-a ou procurando fugir-lhe. A cor, os objectos que criam um imenso de fogo de artifício visual e as personagens bem caracterizadas e em poses estudadas confirmam que toda esta série é uma permanente encenação, mas não há como fugir à certeza do embate: o espectáculo, aqui, é a vida nossa de cada dia.

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