A leitura como programa político
Seminário Leer Iberoamerica Lee
Nos passados dias 7 e 8 de julho o Laboratório Emília, secção do instituto brasileiro com o mesmo nome, organizou o Seminário internacional Leer Iberoamerica Lee em torno da questão “É possível uma sociedade leitora?” Decorreu em Madrid, com o apoio da Feira do Livro, e contou com dezenas de profissionais da área da leitura que ali levaram experiências para partilhar, reflexões, questões, desígnios e manifestos.
Um pouco de contexto
O paradigma da promoção da leitura tem vindo a mudar ao longo dos últimos anos. O pensamento que lhe dá contexto e o fundamenta ganhou complexidade através das teias ideológicas e das ferramentas que a experiência no terreno permite. Mais do que considerar que acompanha as mudanças sociais, económicas e identitárias, esta evolução resulta de uma dinâmica entre o pensamento e as múltiplas realidades sociais, geográficas e culturais onde se promove leitura.
As políticas e as práticas variam de país para país, de região para região. Porém, têm em comum um caminho que começa numa perspetiva mais estrita e individual da leitura e chega hoje a um manifesto de sentido universal. Se há duas décadas imperava, em particular em Portugal, a premissa de que era fundamental ler por prazer e que era possível, criado ou desenvolvido o hábito leitor, evoluir em direção à exigência literária, hoje a competência leitora defende-se como garantia democrática e como direito cultural e humano.
O que parece um salto de gigante e, eventualmente, um desvio abrupto num caminho que se imaginava em linha reta, na verdade resulta em inúmeros pequenos passos reunidos, encontrados, paralelos, cruzados. Estes foram acontecendo enquanto o virtual ganhava terreno ao material, enquanto se impunha a sociedade líquida, o positivismo da auto-superação, a demagogia organizada fazia tremer democracias, algumas margens faziam-se ouvir afirmando-se ainda na margem, o planeta agonizava. Hoje este é, em termos muito genéricos, o panorama com que nos deparamos, o contexto em que vivemos.
Não há espaço nem tempo para a leitura, efetivo ou motivacional. O estímulo alucinante da imagem e do som, com a sua velocidade e ruído, alteram operações cognitivas e comportamentais e hoje a relação com a leitura transforma-se num desafio hercúleo. Passámos de um contexto em que a tradição social dividia pessoas entre as que tinham livros em casa e as que não tinham, as que tinham modelos leitores e as que não tinham, as que tinham acesso ao livro e as que não tinham para um contexto em que o livro pode existir e ser ignorado porque o leitor hipotético não encontra sentido na leitura. Todavia, quando se promove leitura com comunidades que vivem nas margens sociais, estas reagem com desejo, motivação e poder transformador. Estas comunidades, perante um processo de promoção da leitura sério, intuem e ganham consciência do poder da leitura para elas próprias poderem conhecer-se e fazer ouvir a sua voz silenciada e silenciosa.
Questões que levantam questões
Pelas perguntas que orientaram as conversas no primeiro dia conseguimos discernir um programa de intervenção: “Para quem é a democracia? Para quem é a leitura?”, “Que leitores queremos?”, “Que escola para quem?” e finalmente “É a literatura uma forma de resistência?”. Ao longo do dia, foi defendido o direito à leitura como direito básico. Sendo o direito à cultura um direito humano, então a leitura, por extensão, também ali encontra lugar. Sylvie Durán, ex-ministra da Cultura da Costa Rica, recordou a todos o que significam os direitos culturais e este foi um ponto de partida interessante para muito do que se discutiu depois. Assim, os direitos culturais significam que todos podem participar na vida cultural, criar e expressar livremente as suas práticas culturais (sobretudo os grupos minoritários que poucas vezes se sentem representados), todos devem ver preservado e protegido o seu património cultural em que a língua materna tem um papel basilar e ainda devem poder criar e difundir informação sobre a sua cultura.
Estão estes direitos garantidos? Ou inversamente estão cada vez mais em perigo? Velia Vidal, promotora cultural colombiana, partilhou o projeto que vem desenvolvendo na região de Choco, onde mais de 60% da comunidade é pobre. Apesar da violência, as crianças procuravam-na para a ouvir ler, sonhar com outros mundo e desejar que a sua situação melhorasse. Quando se fez o referendo sobre a paz e as suas condições, mais de 70% da comunidade votou a favor da paz. Por isso também não é líquido afirmar que o engajamento ou a participação dependa do conforto que já permite ter outras preocupações. Depende, isso sim, da competência que transforma a ignorância em pensamento, da consciência. De alguma forma, e indo ao encontro de Paulo Freire, trata-se de conseguir ler a realidade e também para isso é preciso acesso ao livro e à leitura. É preciso democracia ou, como alerta a Comissária do Plano Nacional de Leitura português, Teresa Calçada, sem a competência leitora propaga-se o obscurantismo, a ignorância, e tornamo-nos mais vulneráveis a sermos escravos, aceitando que a democracia não seja para todos. De alguma forma a relação entre leitura e democracia bate-se contra uma sociedade que aceita a desigualdade na ilusão de que todos temos acesso, especialmente na Europa. Os limites da democracia estão a expandir-se perigosamente e é preciso perceber o que há de poderoso escondido no direito à leitura. Velia Vidal responde: “O direito de imaginar que há outro mundo possível.” Na região de Choco, a mediadora garante que a sua intervenção está intimamente ligada com a ação anti-racista já que todos estão muito conscientes de quem são: “Somos quem tem direito à democracia.”
Esta perspetiva partilhada por Velia Vidal e tantos outros mediadores que se dedicam a promover a leitura nas margens contraria ferozmente uma ideia instituída tradicionalmente que defende que quando se tem de lutar para sobreviver não se consegue estar disponível para outros estímulos, nomeadamente culturais. Esta hierarquização é artificial e falaciosa. Perpetua a discriminação no acesso aos direitos culturais e favorece a guetização das elites que não são assim abaladas por outros no seu poder. Em conclusão, a cultura empodera.
Temos então uma resposta ideológica para a pergunta: que educação para quem?. Para todos, porque continua a ser o único lugar onde a maioria das crianças está, independentemente de onde vem. A escola tem assim de ser um lugar de acesso e isso implica que deve ser aberta à diversidade de identidades, nomeadamente leitoras, que ali convivem e se formam. E quem forma tem de ser um ativista. Fabián Casas, jornalista argentino, fundador da revista 18 Whiskys, defende que quem forma tem de ter a mente muito aberta para não ceder à tentação de limitar a expressão dos alunos. “É preciso estarmos num estado de disponibilidade.”, continua. “Gosto da ideia do professor ignorante e da igualdade das inteligências.”
A responsabilidade da escola será a de emancipar, a de dotar todos, na nossa diversidade, de ferramentas para existir criticamente no mundo. O reverso da medalha acontece quando o professor usa a educação para embrutecer. Segundo Casas, esse é um risco sério de tão fácil que é praticá-lo. Assim: o professor ouve um aluno e não gosta do que ele diz. No entanto, o aluno di-lo de forma emancipadora, o que é totalmente diferente de ambos poderem ou não ter a mesma perspectiva sobre o assunto. Então, o professor assume que o discurso do aluno não tem importância em vez de manifestar que os pontos de vista são diferentes e podem ser debatidos. O aluno é silenciado e perde uma oportunidade no caminho da emancipação. A disponibilidade depende também do afeto e é daqui que também se parte para a leitura. Através da subjetividade, através das emoções, através da partilha, da generosidade de dar. A leitura é coletiva, mesmo que não o seja no ato de ler, é-o antes e depois, quando se contagia.
Sabemos então que escola desejamos? E que leitores queremos? A partir destas questões, outras surgiram. Se sabemos que leitores queremos, sabemos igualmente que leitores não queremos? Igualmente, pensarmos no leitor que queremos leva-nos a pensar em que mundo queremos. Parece um jogo retórico mas é justamente uma imagem para a importância extrema da causa que se defendeu durante o Seminário. E se tendencialmente tudo parecia centrar-se em processos, transformações e experiências coletivas, eis que se pensa sobre o processo mental da leitura. E sobre o seu poder.
Leitura e literatura
Na promoção da leitura a problemática da leitura literária esteve sempre presente. Também sofreu abalos quando se pretendeu descanonizar a leitura, libertá-la de espartilhos académicos. O enquadramento será bem mais complexo do que isto, já que a edição viveu uma verdadeira revolução, com início na cartelização veiculada por dois ou três gigantes globais que compraram editoras e grupos editoriais no mundo inteiro, sujeitando o mercado do livro a um decréscimo de diversidade e representação de indivíduos e comunidades.
Ainda, o lucro associado a modismos criados e alimentados pelo próprio setor, levaram a um empobrecimento literário por oposição a uma proliferação de fórmulas repetidas até à exaustão.
Quando Sara Bertrand elogia várias plataformas narrativas – os videojogos, as séries dos canais de streaming – fá-lo atendendo a que, entre todos estes produtos que aplanam discurso e pensamento, a resposta criativa e crítica também chega do universo virtual e da imagem. O dilema não se coloca de forma binária, como também atenta Maryanne Wolf, entre virtual e material, entre imagem e texto, entre ficção e não ficção. Trata-se de avaliar a qualidade narrativa do discurso no sentido de nos fazer pensar e não de nos formatar.
Queremos então leitores preparados para ler, seja texto, imagem ou movimento, o que os desafia. Queremos promover as suas competências para que eles possam conhecer-se, estar motivados e curiosos pelo outro e emanciparem-se, agindo na sua e fora da sua comunidade. Nesse sentido, a literatura é uma forma de resistência.
O que tem a literatura que a leva a poder ser resistência ou trincheira?
José Miguel Wisnik defende que só a ficção permite o movimento de obliquação: eu posso ser eu, tu e ele ao mesmo tempo. Quer isto dizer que ao lermos literatura nos abrimos transversalmente ao outro através de emoções, juízos críticos, da recuperação de memórias próprias, da curiosidade pelo desconhecido. Ao ler, acedemos à alteridade. Como diz, a certa altura, Velia Vidal, quando lemos temos o direito de imaginar que há outro mundo possível. A empatia e a esperança, uma maior consciência da verdade contribuem para combater a cultura de violência, que Wisnik escalpeliza, e que se propõe anular e excluir o outro, que constrói um imaginário que visa a sua invisibilidade, a sua aniquilação.
Maryanne Wolf sistematiza, relacionando a imaginação e a empatia. “Imaginação compassiva tem a ver com a capacidade de relacionarmos o que lemos com as nossas experiências e assim podemos dar o passo seguinte e colocarmo-nos no lugar do outro, ou seja, desenvolver a empatia. Isso também depende da nossa capacidade de fazer uma leitura profunda, de atingir a leitura crítica que nos permite fazer inferências e transformar a informação em conhecimento e, assim, a longo prazo, em sabedoria. Isso demora tempo.”
O tempo da contemplação. A vida contemplativa está ameaçada por esta forma de viver. Se não conseguimos ter uma componente contemplativa na vida, estamos a fazer um uso errado do tempo.
No final do primeiro dia de Seminário, Dolores Prades, co-diretora do Instituto Emília, fechou o encontro com uma síntese das várias intervenções e deixou duas afirmações. Na última conversa do segundo dia, moderada por ela, as duas foram amplamente ratificadas.
“É possível uma sociedade leitora, sim!”
“Vamos precisar de imenso tempo para digerir todas as ideias que ouvimos aqui.”