Metamorfoses terrenas
a pedra é mais bela que o pássaro
Raquel Gaspar Silva
Caixa Alta
Depois de uma estreia literária que se deu a ler sob a forma de romance, com Fábrica de Melancolias Suportáveis (Elsinore, 2017), Raquel Gaspar da Silva regressa aos livros com um pequeno volume de contos. Quem percorreu os territórios labirínticos das memórias familiares que se desfiavam nesse romance, bem como a ligação das personagens à terra – não apenas o lugar, mas a terra propriamente dita, solo de onde crescem alimentos e brotam águas e por vezes secam histórias –, reconhecerá um certo universo nestas narrativas breves.
Apesar dessa ligação, mais emocional do que narrativa, a pedra é mais bela que o pássaro é um outro passo, totalmente novo, na afirmação de uma voz que vale a pena acompanhar no espaço da literatura portuguesa.
Os onze contos que compõem este livro assumem, desde os títulos, a metamorfose como génese. Uma leitura possível aponta para o modo de olhar cada coisa e cada ser, definindo aquilo que se vê à luz do modo como se vê: um homem pode ser um cavalo, uma mulher pode ser uma árvore, uma pedra pode ser santa. Afinando a leitura à medida que vão desfilando personagens que se fundem noutras personagens ou em objectos, afirma-se essa capacidade de transmutação como eixo narrativo, suportada por um registo telúrico que volta, como acontecia em Fábrica de Melancolias Suportáveis, a fazer da terra e da sua força vital um maquinismo que tanto permite ler o mundo como parece criá-lo. Aqui, nestes contos, esse maquinismo alimenta-se da transmutação, ecoando Ovídio e as suas Metamorfoses. E tal como no poema de Ovídio, estes contos não registam apenas as transmutações das suas personagens, estendendo a metamorfose à linguagem, que assim se revela à altura de registar as eternas e inevitáveis mudanças do mundo, revelando também a sua própria capacidade de o fazer mudar.
Esta é quase sempre uma escrita de excesso, por vezes reverberando ecos barrocos entre adjectivações, metáforas e um sem fim de detalhes descritivos que se acumulam: «tinha a pele fina, distinguiam-se as veias como um ecossistema de algas, derrames, canais, esponjas e zooxantelas, um recife de corais. o cabelo enleado em alecrim, rosmaninho, tomilho e madressilva, úlceras de pedrinhas, pastas de sangue, gotas de orvalho querendo descolar-se do escalpe como a bainha da cordilheira que se levanta e levita na orla da planície.» (pg.69-70, «homem-cavalo»). O excesso, no entanto, integra harmoniosamente o coração e a estrutura destas narrativas, porque é dele que nasce o pequeno universo encenado em cada conto. Quase como uma cosmogonia, o mundo não existiria antes que o texto lhe desse corpo e sem os detalhes abundantes e a torrência da escrita que funde personagens e lugares, sobraria o vazio e a ausência de tempo, sobre os quais nada haveria a dizer.
Personagens como a mulher-serpente, a avó de «coisa-santa» ou o diabo de «homem-vassoura» reclamam para a leitura alguns temas do romanceiro tradicional ou dos imaginários populares e lendários de certas regiões, mas não é da replicação de tópicos antigos trazidos para uma escrita contemporânea que se fazem estes textos. A sua construção não se funda numa recuperação, mas antes no registo de um tempo sem divisórias, que assume que aquilo que seria apenas herança lendária é ainda – e talvez seja sempre – o ar que se respira, independentemente do avançar dos dias e daquilo a que chamamos progresso. Poder-se-ia falar de um registo fantástico, não fossem as suas manifestações mais evidentes assumidas como filtro para decifrar o mundo e nunca como efeito especial de uma qualquer realidade paralela. Se, no poema de Ovídio, deuses e humanos se aproximam em vertigem constante, nestes contos essa separação de categorias divinas e terrenas nem sequer tem espaço para se afirmar como pertencente a mundos diferentes. As muitas metamorfoses que aqui se registam são fenómenos de um só mundo, aquele que nasce da escrita de cada narrativa e se abre ao gesto de conferir sentidos possíveis aos caminhos que vamos fazendo no tempo que nos cabe viver.