Olhar a morte sem perder o riso
Permafrost
Eva Baltasar
Kalandraka
Tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas
A poeta catalã Eva Baltasar estreou-se no romance com uma narrativa de contornos trágicos, contada na primeira pessoa e atravessada por uma curiosa mistura de neurose com humor. Alternando cronologias e cruzando memórias, impactos do que originou essas memórias e o desafio de as enfrentar, Permafrost dá voz a uma narradora que vai pensando em suicídio ao mesmo tempo que a sua vida avança entre surpresas. A linguagem pode descrever-se como crua, pouco interessada em eufemismos, mas igualmente protegida de exibicionismos, e nela se percebe a importância do ritmo e da prosódia para uma autora que se dedica igualmente à poesia.
«Eu achava que aquilo era normal, quando somos pequenos a normalidade circunscreve-se à nossa casa. Essa é a normalidade que nos molda.» (pg.16) Quando a narradora regista estas palavras, já sabemos da sua demanda pela morte e de algumas das características da sua infância. Sabemos, sobretudo, do modo como esta infância se tornou determinante, uma mancha a espalhar-se pelos anos subsequentes. Permafrost surge textualmente como o sonho de qualquer psicanalista, com a narradora acedendo ao seu pensamento mais superficial, mas igualmente ao mais profundo e escondido, conseguindo fazer dessa matéria informe um lugar onde o verbo confere ao mundo a organização possível. Os tempos vão-se sobrepondo, mas mantém-se ao longo de todo o livro uma linha cronológica que acompanha o crescimento da narradora e onde a descoberta da sexualidade, contada sem filtros, se revela uma antecipação para a descoberta da morte. Freud não desdenharia do paralelo, claro, e a narradora trabalha-o com dedicação, assumindo a auto-destruição como caminho único ao mesmo tempo que vai deixando revelar (para os leitores e para si própria) o impulso vital que acabará por dominá-la. Esta ideação suicida, que confere ao texto um peso e uma tensão permanentes, é mais fantasia de fuga do que desejo concreto de morte, e talvez por isso o humor corrosivo e auto-depreciativo nunca desapareça, como que assegurando que enquanto tivermos capacidade de rir de nós próprios, nem tudo está perdido.
As leituras tendem a incitar a elaboração de constelações, referências cruzadas, por vezes coincidências. A leitura de Permafrost convoca um outro romance catalão, da autoria de Alicia Kopf, Irmão de Gelo, traduzido em Portugal pela Alfaguara (2018). Não há referências a este livro no livro de Eva Baltasar, mas sendo oriundos da mesma geografia e do mesmo tempo, e partilhando, como elemento estruturante, a metáfora do gelo como camada que serve de muralha para o exterior, mantendo o interior a salvo – mas também fechado, incapaz de acolher –, é difícil evitar a convocação e a comparação. Onde Irmão de Gelo é um abismo onde percebemos que é preciso tombar, o livro de Eva Baltasar escolhe construir-se como uma saída, mesmo que inopinada, de um abismo semelhante (talvez os abismos não difiram muito quando se trata da condição humana). Apesar do desespero latente, da influência inevitável e nefasta dos traumas de infância e das ideações suicidas, Permafrost sustenta uma esperança latente ao longo de toda a narrativa, muito alicerçada no sarcasmo, mas sobretudo na constatação de uma vontade de vida que contraria a aparente intenção de morte da narradora. Irmão de Gelo é de um outro lugar, menos dedicado à procura de respostas do que à submersão numa catadupa de perguntas e dúvidas e no potencial plástico e verbal de toda essa matéria desconhecida, lado a lado com a consciência de que não somos feitos de outra coisa.
O livro de Eva Baltasar assenta, portanto, nesse traço só aparentemente contraditório, o de narrar uma discussão em modo de monólogo sobre o suicídio como solução e ser, ao mesmo tempo, um texto profundamente redentor. Não é exactamente um final feliz, até porque Permafrost mostra um corte temporal que não sabemos como evolui a partir do momento em que a narrativa cessa, mas é um exercício de suspensão – do tempo e das decisões irrevogáveis, ainda que não da angústia. E talvez a redenção esteja precisamente aí, na assunção de que a angústia não desaparecerá, mas que o mundo pode prosseguir ainda assim.