Publicado em 2002, O Homem Duplicado completa este ano duas décadas de vida. Para assinalar a efeméride, a Blimunda deste mês recupera um texto publicado pelo crítico literário Eduardo Prado Coelho no jornal Público aquando do lançamento do romance de José Saramago.
A ordem indecifrável
Com extrema regularidade, Saramago vai lançando, ano após ano, mais um romance, e os seus leitores fiéis reencontram tudo aquilo que os encanta: uma prosa de recorte clássico, com um narrador mais ou menos cúmplice, mais ou menos distanciado, que com ironia e alguma complacência acompanha as personagens, sem deixar de puxar paralelamente um fio sentencioso que coloca esta literatura na órbita dos moralistas do século XVII; um tom vagamente anacrónico, com personagens que, mesmo quando jovens, parecem sair do princípio do século (de certo modo, são todos colegas de Pessoa nas ruas de uma Lisboa antiga e emoldurada), e arrastam consigo nomes quase sempre improváveis, com algum simbolismo implícito (no caso actual, o nome do protagonista é Tertuliano Máximo Afonso, o que é muita opressão para um homem só); uma forma cada vez mais afinada de embrechar os diálogos no tecido discursivo, dando-lhes uma espécie de anonimato e permutabilidade que desconcertam os leitores mais incautos; e um sentido agudo do desacerto do mundo e da extrema solidão que daí advém.
E de tudo isto, que faz uma obra já impressionante, nos fala o próprio Saramago num compendiar da matéria dada: “O que por aí mais se vê, a ponto de já não causar surpresa, é pessoas a sofrerem com paciência o miudinho escrutínio da solidão, como foram no passado recente exemplos públicos, ainda que não especialmente notórios, e até, em dois casos, de afortunado desenlace, aquele pintor de retratos de quem nunca chegámos a conhecer mais do que o inicial do nome, aquele médico de clínica geral que voltou do exílio para morrer nos braços da pátria amada, aquele revisor de imprensa que expulsou uma verdade para colocar no seu lugar uma mentira, aquele funcionário subalterno do registo civil que fazia desaparecer certidões de óbito, todos eles, por casualidade ou coincidência, formando parte do sexo masculino, mas nenhum que tivesse a desgraça de chamar-se Tertuliano”.
Não sei se já foi observado que o mecanismo narrativo de Saramago se desencadeia à maneira de Hitchcock – segundo a famosa lógica do MacGuffin. Que é um MacGuffin? Um homem num comboio interroga outro homem sobre um pacote que tinha colocado na bagageira da carruagem. O outro responde, apontando o pacote: “Ah, isso é um MacGuffin.” O primeiro pergunta: “Mas o que é um MacGuffin?” O outro diz: “É um aparelho que serve para caçar leões nas montanhas de Adirondack.” “Mas não há leões nas montanhas de Adirondack”, observa o primeiro. Ao que o segundo retorque: “Então não é um MacGuffin.”
Donde, um MacGuffin é qualquer coisa que não é verdadeiramente nada, mas que passa a sustentar um segredo. E o segredo é o que move o protagonista. É ele que suporta essa ofegante demanda de saber o que está debaixo do nome de MacGuffin. Ora todos os heróis de Saramago são “tirados do sério” (como diriam os brasileiros) por um “déclic” que funciona como um MacGuffin: no romance de que falo, uma cassette vídeo com um filme em que Tertuliano descobre um actor que é exactamente igual a ele. A partir daí parte para uma obsessiva pesquisa que desvaloriza tudo à sua volta (profissão, amigos, amores, sono, saúde, medo) e o lança numa linha de fuga – na convicção de que MacGuffin é o verdadeiro nome de Tertuliano. Daí o “suspense”, a intriga de atmosfera policial, o desenlace inesperado.
O livro intitula-se “O Homem Duplicado” (Caminho) e já todos conhecem a trama romanesca. É possível ler nesta história de homens que vão descobrindo que há outros homens exactamente iguais a eles – uma espécie de alegoria à maneira do “Ensaio sobre a Cegueira”.Temos mesmo para corroborar esta hipótese a prova pelas laranjas: “Imagine um cesto de laranjas, disse o outro, imagine que uma delas, lá no fundo, começa a apodrecer, imagine que, uma após outra, vão todas apodrecendo, quem é que poderá, nessa altura, pergunto eu, dizer onde a podridão principiou? Essas laranjas a que está a referir-se são países, ou são pessoas, quis saber Tertuliano Máximo Afonso. Dentro de um país, são as pessoas, no mundo, são os países, e como não há países sem as pessoas, por elas é que o apodrecimento começa inevitavelmente.”
Donde, o que está em causa é o problema da identidade pessoal. E Saramago vai recorrer (como já o fizera no “Ensaio sobre a Cegueira”) ao que poderemos chamar o paradigma epidémico. O mal espalha-se por contágio, é um movimento, como disse Baudrillard, de tipo viral. Mas se a cultura antiquíssima das epidemias está ligada à doença e ao mal, temos hoje algumas alterações nesta situação: por um lado, a nossa época é a primeira que procurou dar também um sentido positivo ao paradigma epidémico: que os duplos se multipliquem seria uma forma de nos libertarmos da obsessão da origem e da tentativa permanente de distinguir o original da cópia. A proliferação dos simulacros seria a libertação eufórica do domínio do fundamento e da origem. A problemática da serialidade na arte contemporânea vai neste sentido. Em segundo lugar, os mecanismos de terror são hoje também de tipo epidémico, atingindo o seu apogeu no confronto entre um sistema hierarquicamente organizado, como são os exércitos tradicionais, e um sistema reticular onde tudo se propaga sem montanhas fronteiras (como são os movimentos terroristas).
Em Saramago, existe uma evidente repulsa pela face positiva do movimento epidémico, o que pode ser confirmado em dois planos. Primeiro, no diálogo de Tertuliano com a mãe. Esta acha que o duplo está, embora adormecido, nele próprio, e que o contacto com a duplicação que é o outro homem será apenas uma forma violenta e mortífera de o despertar: “Há uma parte de ti que dorme desde que tem nasceste e o meu medo é que um dia destes sejas obrigado a acordar uma violentamente. (…) Unicamente te peço que não voltes a encontrar-te em com esse homem, promete-mo.”
Em segundo lugar, a grande obsessão no confronto entre Tertuliano e o seu duplo António Claro é saber a que horas cada um deles nasceu. E para quê? Para se descobrir qual é a cópia e qual é o original. Só que, no interior do próprio livro, há elementos que contradizem esta tendência: não é que a tese do professor de História consiste em defender que, em vez de se ensinar a História do princípio para o fim (na ordem que permite distinguir a origem e os seus efeitos), se poderia ensinar a História do fim para o princípio (num processo de reversibilidade em que só haveria efeitos)?
Contudo, neste confronto entre a seta do tempo e reversibilidade da história, é a primeira que tende a afirmar-se. Mesmo que a ordem natural das coisas já não seja evidente, há uma máxima que domina este romance: “O caos é uma ordem por decifrar.” Esta ordem das coisas é uma ordem para o leitor.
É isto que leva Saramago a aproximar-se do problema da identidade pessoal dos homens reduzindo-os ao estatuto de meras coisas: ao estatuto do “inanimal” que em dada altura teoriza (“é do inanimal que viemos e é para o inanimal que nos encaminhamos”). No “inanimal”, a identidade é de tipo substancial: duas coisas são iguais quando têm a mesma substância (tal como Tertuliano e António são iguais por que têm o mesmo corpo, a mesma voz, o mesmo rosto, os mesmos sinais, as mesmas cicatrizes). Mas foi Locke, num texto famoso do “Ensaio sobre o Entendimento Humano”, que procurou mostrar que, no plano dos humanos, só há identidade, quando há a mesma consciência: para ele, a consciência faz a identidade pessoal. Ora em Saramago tal não acontece: Tertuliano e António Claro têm duas consciências diferentes.
E mais: se seguirmos o critério de Ricoeur, que relaciona a identidade pessoal com a identidade narrativa, que implica o modo como o sujeito se narra a si mesmo, então poderíamos dizer que se trata de dois seres em grande parte diferentes. Mas tanto a identidade da consciência como a identidade narrativa estão abertas ao futuro, enquanto a identidade da substância aparece enraizada no passado. Para Saramago, que cada homem seja desde o princípio diferença que se autodiferencia incessantemente só pode ser algo de tão destrutivo como o apodrecimento das laranjas.
E é aqui que surge um aspecto extremamente interessante, e que implicaria posteriores desenvolvimentos. Leiam-se duas páginas ao acaso (a 176-177): “A Tertuliano Máximo Afonso desassossega-o agora a possibilidade de ser ele o mais novo dos dois, que o original seja o outro e ele não passe de uma simples e antecipadamente desvalorizada repetição. Como é óbvio, os seus nulos poderes divinatórios não lhe permitem distinguir na bruma do futuro se isso terá alguma influência num porvir que todos temos razões para classificar como impenetrável, mas o facto de ter sido ele o descobridor do sobrenatural portento que conhecemos havia feito nascer na sua mente, sem que de tal se tivesse apercebido, uma espécie de consciência de primogenitura que neste momento se está rebelando contra a ameaça, como se um ambicioso irmão bastardo aí viesse para o apear do trono. Absorvido nestes ponderosos pensamentos, remoído por estas insidiosas inquietações….”
Enumeremos: “simples e antecipadamente desvalorizada repetição”, “nulos poderes divinatórios”, “sobrenatural portento”, “ambicioso irmão”, “ponderosos pensamentos”, “insidiosas inquietações”. Há na prosa de Saramago uma forte tendência para antepor o adjectivo ao substantivo, o que corresponde a uma atitude que reforça a ideia de identidade: o adjectivo não vem acrescentar nada, é apenas uma enunciação de um atributo que pertence por essência ao substantivo, tem uma função analítica. Quando o adjectivo é posposto, ele tem uma função sintética, abre a palavra no sentido do futuro na medida em que ela vai incorporar um novo traço distintivo.
Em “O Homem Duplicado”, José Saramago põe a identidade à prova da duplicação, mas apenas sossega quando o duplo é eliminado. No entanto, o seu pessimismo é grande: um novo duplo vai surgir na cena seguinte, como se o romance começasse no ponto onde acaba e história vá mesmo ser contada do fim para o princípio. Saramago está do lado da identidade, mas reconhece a força perversa das duplicações.
Donde, o tema da identidade e do duplo, que Saramago corajosamente afronta para denunciar os seus efeitos perversos, encontra aqui várias trincheiras defensivas como etapas da luta contra a indiferenciação do mundo contemporâneo: a mais secreta é a da própria escrita. É pela escrita que se vai manter a ameaçada integridade das coisas. Mas conseguirá ela vencer? Será capaz de decifrar o caos? De qualquer modo é nela que reside a dramaticidade última deste romance: duelo sem trégua entre um tema e a prosa que a narra.
* Texto publicado originalmente no jornal Público, a 9 de novembro de 2002