Saramaguiana
por Carlos Reis & Irene Vallejo 14 Dezembro 2021

Carlos Reis & Irene Vallejo – palavras para um Centenário

As comemorações do Centenário de José Saramago tiveram início oficialmente no dia 16 de novembro. Durante o dia, alunos de escolas em Portugal, Espanha e Brasil leram um conto do autor. À noite, no São Luiz Teatro Municipal, durante a sessão que contou com um concerto da Orquestra Metropolitana de Lisboa, José Saramago foi condecorado postumamente pelo Presidente da República com o grande-colar da Ordem de Camões.
A Blimunda publica o discurso pronunciado por Carlos Reis, comissário para o Centenário, na abertura oficial das comemorações, e as palavras ditas pela escritora espanhola Irene Vallejo, autora de um Manifesto pela Leitura.
Carlos Reis © Rui Ochoa / Presidência da República

Lançar a semente

Por Carlos Reis, comissário para o Centenário 

Esta manhã, à mesma hora, muitas centenas, talvez milhares de crianças e adolescentes, em Portugal, em Lanzarote, no Brasil e noutros lugares do mundo, leram o conto de José Saramago A Maior Flor do Mundo. Assim se formou, sem fronteiras nem interdições, uma cadeia de vozes juvenis que reviveram uma história de aventura e de ousadia, acerca de uma flor que era preciso salvar, acerca da Terra em que ela vivia e dos cuidados que com essa Terra havemos de ter. Ressalvando o  apreço por aquilo que esta noite aqui acontecerá, não conheço outra forma mais expressiva de começarmos a celebrar o Centenário de José Saramago; e não tenho memória de que alguma vez um escritor tenha motivado tantos e tão jovens leitores, em simultâneo, numa impressionante homenagem por aquilo que esse escritor representa e representará nas suas e nas nossas vidas.

Foi lançada a semente, num solo que não podia ser mais fértil para que ela germine e dê frutos. Chama-se leitura essa semente e é ela que está no centro fulcral daquilo que a Fundação José Saramago programou, para assinalar o Centenário do seu patrono. Fê-lo por si mesma e com a ajuda de entidades públicas e privadas, em Portugal e além-fronteiras, numa conjugação de esforços que bem ilustra a presença forte de José Saramago, antes e agora, em muitas partes do vasto mundo em que ecoa a sua obra. 

A leitura de Saramago não se restringe, todavia, aos seus livros, conforme mostra o programa do Centenário. A partir e para além do Memorial do Convento ed’O Ano da Morte de Ricardo Reis, do Ensaio sobre a Cegueira e de Caim, há um outro Saramago, em perene sobrevida. No teatro e na música, na dança e nas artes visuais, no cinema e na ópera, em escolas e em manifestações de rua, em universidades e em bibliotecas, em debates e em exposições, em livros e em revistas, em Portugal e no estrangeiro, Saramago está e estará vivo, durante o ano que agora começa e ainda para além dele. É já um pouco dessa permanência que teremos esta noite, quando escutarmos um manifesto pela leitura e, depois disso, a música de Joseph Haydn em diálogo com as palavras do escritor.

O Centenário de José Saramago será uma festa da literatura e da cultura, uma grande angular aberta sobre outros escritores e sobre outras artes. Uma festa que, contudo, não pode esgotar-se na vivência lúdica de textos que são mais do que divertimento passageiro. Por isso continuamos a lê-los. Porque a grande literatura e a grande arte são do seu tempo, mas são também da gente que vem depois dele, gente que há de responder a duradouras mensagens de interpelação e de subversão. Sendo espaço de liberdade e de desafio, a grande literatura e a grande arte só valem a pena quando, como disse Saramago, nos afastam do nosso conforto. O mesmo escritor que afirmou que “fora da História não há nada” disse mais: “O ser humano é a matéria do meu trabalho”. E a isto acrescentou o que entendo como síntese da sua maneira de estar na literatura e, já agora, como lema da sua evocação centenária: “Vivo desassossegado, escrevo para desassossegar”.

Na minha qualidade de Comissário para o Centenário de José Saramago, a todos convido a que participem ativamente na celebração de um escritor que, insisto, está vivo e entre nós. Chama-se ele José Saramago.


Irene Vallejo © Rui Ochoa / Presidência da República

Manifesto pela leitura

Por Irene Vallejo

Estou muito feliz por partilhar convosco esta celebração. É para mim uma honra e um prazer infinitos. Obrigado à Fundação José Saramago por me ter convidado a fazer parte destas horas vibrantes. Peço desculpa por não falar português, uma língua que leio, compreendo e amo.

Saramago representa a força transformadora da literatura. Nasceu num lar humilde, sem livros. Parecia improvável que esse menino se convertesse não num escritor, mas inclusive num leitor. Mas os livros mudaram a sua vida, e ele transformou as nossas. Educou-se na escassez de quase tudo, mas possuía a riqueza das palavras. Como ele mesmo escreveu: “A palavra mais insignificante, a palavra que parece não contar, a de todos os dias, é como um pequeno tesouro. E, em consequência, um livro é o lugar mais rico que existe”. Cada obra de José Saramago recorda-nos esse prodígio que nasce da educação, da cultura, quando postas ao alcance de todos. Hoje, aqui, celebramos o seu sonho: que as palavras, a literatura e o conhecimento sejam património coletivo.

Um caloroso agradecimento a Pilar del Río e a minha gratidão ao ofício da tradução, tão generoso, tão essencial. Toda a tradução é um salvo-conduto para territórios que nos fascinam, todo o tradutor é um vigia secreto das pontes entre as línguas. Como sabia o protagonista da “História do Cerco de Lisboa”, escolher uma palavra no lugar de outra pode mudar a história, e todas as nossas pequenas histórias. As traduções das obras de José Saramago trespassaram as mais inesperadas lonjuras. Afirmou: “Os escritores fazem as literaturas nacionais e os tradutores fazem a literatura universal. Sem os tradutores, nós os escritores não seríamos nada. Estaríamos condenados a viver fechados na nossa língua.”

Obrigado, querida Pilar, por este generoso convite, pelo teu compromisso apaixonado, por continuares a epopeia de tantas mulheres vitais que, como tu, trabalham cada dia para salvar os livros que amamos. Por cuidar a memória viva de um escritor que nos ensinou a ver com olhos novos. Pela tua homenagem a uma literatura e a uma língua, a portuguesa, que tanto queremos e admiramos. Saramago pensou-nos a todos. Fez-nos sentir que a realidade permite muitas leituras alegóricas e que a verdade às vezes é um privilégio da ficção. Em agradecimento a José, a Pilar e aos que aqui estão celebrando o valor das palavras, leio alguns parágrafos do Manifesto pela Leitura.

Caligrafias do cuidado

Frágeis

Era uma vez uma mulher sozinha num território perigoso. Pequena e magra, todas as noites devia enfrentar uma temível ameaça. Mas, nas histórias, os mais pequenos, os fracos, os frágeis possuem sempre um talismã salvador. Ela conhecia um sortilégio infalível: era capaz de erguer à sua volta um muro de ar para se defender. Os silhares dessa muralha invisível eram as palavras. Quando uma história brotava dos seus lábios, as pessoas paravam para a ouvir, com o olhar fixo, como que em transe, esquecendo os seus afazeres, as suas angústias e a sua ira. As suas fábulas eram, para todos, um refúgio face à ameaça do perigo.

Esta é a história de Xerazade nas Mil e Uma Noites. A mitologia grega falou-nos de Odisseu, o azafamado e lutador herói homérico, que recorria a astutos relatos para salvar a vida. Também dos versos e dos cantos mágicos de Orfeu, que seduziam os animais e venceram a morte.

Somos uma espécie frágil, particularmente frágil: nem muito forte, nem demasiado rápida, nem especialmente resistente à fome, à sede, ao calor ou ao frio. Não estamos adaptados ao voo nem à vida subaquática. Nascemos totalmente indefesos e a nossa infância é mais prolongada do que a de qualquer outro animal. Até um vírus minúsculo nos põe em perigo.

No entanto, uma brisa de uma qualidade surpreendente levou-nos a um desenvolvimento inesperado, a um imprevisível progresso. Essa faculdade é a nossa imaginação, que, aliada à linguagem, nos permite sonhar com o inconcebível, colaborar e fortalecermo-nos mutuamente. Somos a única espécie que explica o mundo com histórias, que as deseja, tem saudades delas e as utiliza para o processo de cura.

A nossa autêntica força é criativa. O impossível deve ser sonhado primeiro, para algum dia tornar-se realidade.

Asas e alicerces

Nos mundos inventados encontramo-nos, entendemo-nos e aprendemos a colaborar. A leitura faz parte da preparação necessária para viver em democracia. Desde que os gregos o ensaiaram pela primeira vez há milénios, este sistema é o mais exigente e surpreendente que tentámos pôr em prática. Pretende criar uma convivência que não se baseie na força, mas que se apoie numa delicada urdidura de acordos e numa conversação incessante.

«Da palavra “leitor” deriva o termo eleitor.» No compasso quotidiano da experiência democrática, cada um e cada uma de nós toma, com o seu voto, decisões que vão ter consequências cruciais na vida de outras pessoas. Quanto melhores trapezistas formos, capazes dessa pirueta que nos coloca no olhar alheio, mais sólida será a democracia que edificamos. O exercício de voar fortalece os nossos alicerces.

Perigos quase imperceptíveis

Somos responsáveis pela preservação dessa bagagem de histórias graças às quais crescemos e criamos. Através do fio generoso que liga as nossas vidas às gerações do futuro, herdámos o antigo compromisso de conservar esses refúgios mágicos e magnéticos que albergam os livros.

É neles que permanecem as nossas luzes, sombras e claros-escuros, todas as ideias, explicações e certezas provisórias, todas as nossas descobertas e desejos. Convicções, olhares e horizontes tão diversos como a própria Humanidade encontram-se e dialogam. O plural de todas estas palavras é importante, e as prateleiras de bibliotecas e livrarias são as suas guardiãs.

Existe hoje, entre nós, o perigo – quase impercetível – do esquecimento, da omissão, do descuido, da indiferença de uma sociedade que não saiba salvaguardar os livros e os elos dessa cadeia invisível que os salva. Urge manter sempre a imaginação incandescente; urge apoiar as pessoas que acreditam, constroem e expandem os nossos sonhos: a escrever, a traduzir, a rever, a ilustrar, a editar, a imprimir.

Apoiar quem dá vida às palavras a partir das editoras, das agências, dos ateliers, das gráficas, das distribuidoras. Apoiar as livrarias, que proporcionam essa viagem emocionante e irrepetível de levar cada exemplar até às nossas mãos. Apoiar as bibliotecas e os arquivos, viveiros acolhedores onde cultivamos o saber para o amanhã de cada dia. Apoiar as escolas, onde aprendemos os rudimentos destes traços misteriosos que ampliam o nosso horizonte e os nossos atlas mentais. E, sobretudo, é imprescindível cuidar de quem lê: nos clubes de leitura, nos centros culturais e nas pequenas bibliotecas rurais, nos programas de incentivo à leitura e nos encontros com escritores. Naquela reunião de mulheres, numa tarde de chuva, a partilharem pão de ló à luz de um romance; ali, onde um contador de histórias aponta com os seus dedos para as páginas diante de uma roda de diminutos olhos atónitos; nessa viagem de um poeta rumo ao diálogo com leitores de uma aldeia longínqua e nevada, estão a tecer-se as redes, as rotas e as esperanças do futuro.

Salvemos o milagre

Os livros nasceram como um privilégio de sacerdotes, aristocratas, nobres. Durante centenas de anos, estes cofres de sabedoria e de histórias permaneceram guardados nos palácios, nos grandes conventos, nas mansões mais sumptuosas, nos andares principais das casas nobres. Eram símbolo de luxo e privilégio.

Numa surpreendente viagem de trinta séculos, conseguimos que hoje todos tenhamos um passaporte para o conhecimento: a alfabetização e o livre acesso à leitura. Tirámos ferrolhos aos livros e calçámos-lhes sapatos confortáveis. Trouxemo-los para a praça pública, para a ágora, onde o acesso não é interdito a ninguém.

Isso não aconteceu por magia. É a colheita de anos de educação e de transformações sociais. Em escolas e universidades. Em editoras que criam livros de bolso para todos os bolsos. Nas gráficas. Nas livrarias de rua.

Desde as Missões Pedagógicas da Segunda República até às feiras e festas onde as letras apanham sol. Desde o incentivo público até ao minucioso entusiasmo das empresas que alimentam a cultura. Da perseverança de inúmeras professoras anónimas aos quartos onde as crianças fecham os olhos embaladas por uma história.

Nestes dias incertos, quando parece que os gritos se ouvem mais do que os sussurros, os livros continuam a manter vivo o diálogo silencioso de dois olhos que ouvem a voz silenciosa de umas filas de letras.

Nas prateleiras das bibliotecas, nas mesas das livrarias, nas bancas ao ar livre, convivem juntos livros escritos em países adversários, até em guerra uns com os outros. Atlas físicos do mundo e manuais de interpretação dos sonhos. Ensaios monográficos sobre micróbios ou galáxias. A autobiografia de um general ao lado das meditações de um desertor. Romances pós-apocalípticos empilhados juntamente com utopias a transbordar de esperança. Memórias com doses de amnésia e ficção científica baseada em factos reais. Aí não se conhecem as fronteiras temporais nem geográficas. Uma livraria, por mais minúscula que seja, é o melhor refúgio para um cosmopolita.

E, finalmente, todos e todas, sem exceção, estamos convidados a esta prodigiosa viagem coletiva: estrangeiros e autóctones, pessoas com fatos ou tatuagens, peles cor de azeitona, de maracujá ou de chantilly, homens que usam coque ou mulheres que usam gravata. Isto é parecido com uma utopia.

Sabemo-lo muito bem, narra-se nos contos populares: as histórias e os livros contêm no seu interior um mágico feitiço de proteção, uma força imune para os humanos. Por trás do que chegámos a ser palpitam as rebeldias de gerações anteriores.

Ler é dar sentido ao empenho de tantas professoras e bibliotecários, de ingénuos e sonhadoras de novos mundos, de incontáveis Xerazades e Dom Quixotes, dos nossos avôs e das nossas bisavós que, num país afundado no pós-guerra, almejaram melhores oportunidades para nós. Queriam que fôssemos pessoas mais inteligentes, mais aladas, que lêssemos mais, viajássemos mais, fôssemos mais livres do que eles. Os livros são refúgios da memória, espelhos onde nos olhamos para podermos ser mais parecidos com aquilo que desejamos ser. Estes frágeis universos são a nossa força.

Somos seres entretecidos de relatos, bordados com fios de vozes, de história, de filosofia e de ciência, de leis e lendas. Por isso, a leitura vai continuar a cuidar de nós se nós cuidarmos dela. O que nos salva não pode desaparecer.

Os livros recordam-nos, serenos e sempre dispostos a abrir-se perante os nossos olhos, que a saúde das palavras está enraizada nas editoras, nas livrarias, nos clubes de leituras partilhadas, nas bibliotecas, nas escolas. É aí que imaginamos o futuro que nos une.

Conclusão

Termino com umas palavras do mestre José Saramago. “A literatura precisa de leitores indomáveis, para que ela mesma o seja.” Esta noite, em nome de José Saramago, homenageamos os que escrevem e lêem sem se deixar domar.

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Nota: O Manifesto pela Leitura foi publicado em Portugal pela Bertrand Editora numa tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas